Saturday, October 29, 2011

UMA POCAHONTAS NORDESTINA...


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A Pocahontas original , a princesa índia americana, algonquina da Virgínia, que viveu entre 1596 e 1617 , numa imaginária representação pictórica antiga  — e o leitor concordará com minha aposta de que nossa Iratembé, "a de lábios de mel", filha do cacique Iniguaçu, era bem mais bonita
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SÓ PARA LEMBRAR NOVAMENTE: PIVÔ DA FUNDAÇÃO DA PARAHYBA FOI UMA BELA ÍNDIA POTIGUARA

por Evandro da Nóbrega,
escritor, jornalista, editor
[druzz.judiciario@gmail.com]


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Que ninguém que surpreenda, hoje, que o nome de uma mulher indígena esteja inscrito nas próprias origens da Capitania da Parahyba.
Todos os fatos abaixo narrados — é bem verdade que sob roupagem mais ou menos nova — são bem conhecidos dos historiadores.
Portanto, não será despautério reassegurar às gerações atuais que a própria origem da Capitania da Parahyba deve-se a uma mulher.
No caso, a índia potiguara Iratembé ("Lábios de Mel"), filha do cacique Iniguaçu ("Rede Grande").

Um Mameluco Aventureiro
Iniguaçu chefiava então o aldeamento indígena de Cupaoba, localizado na área hoje integrada pelos municípios de Serra da Raiz, Lagoa de Dentro, Sertãozinho e Duas Estradas, na microrregião do Brejo Paraibano.
Aconteceu assim: um aventureiro mameluco (mestiço de português com índio), cujo nome se perdeu, mas que residia em Olinda, na Capitania de Pernambuco, esteve em visita a Cupaoba, onde irremediavelmente se engraçou da belíssima filha do cacique Iniguaçu — a já citada Iratembé, de apenas 15 anos de idade.

Desobedecendo ao Morubixaba
O tal mestizo foi ao cacique e pediu a moça em casamento. O morubixaba, que, óbvio, muito amava a belamente núbil filha, concordou em cedê-la — mas com uma condição: que a moçoila de melíferos lábios, de beiços polinizados com o néctar de jataí, de boca mais doce que o mel de alfarroba ou o próprio mel do Himeto, continuasse morando indefinidamente em Cupaoba.
Aproveitando-se, porém, da circunstância de o cacique haver-se afastado da aldeia, com os filhos guerreiros, para uma caçada, o mameluco deu às de vila-diogo, retirou-se “à francesa”, deu o fora, arribou, debandou — enfim, esfregou “sebo nas canelas”, fugiu, foi-se embora para Olinda. E, claro, levou consigo a faceira semideusa mortal de nome Iratembé.

Pense na Pôpa que o Cacique Deu!
O cacique potiguara irritou-se em grau maior com o sequestro da jovem filha — realmente sua "princesa", sob todos os aspectos. Mas, como desejava manter a paz com os brancos, Iniguaçu enviou dois filhos guerreiros em missão de paz a Olinda, então cabeça da Capitania de “Paranampuca” [“água que estronda”, efeito das ondas arrebentando contra os arrecifes].
Assim, os guerreiros potiguaras viajaram de Cupaoba a Olinda com a finalidade de obter do capitão-mor pernambucano o ansiado regresso da filha Iratembé.
Esses fatos se passavam no mui recuado ano de 1574 — pouco mais de uma década antes da fundação da Parahyba.

Uma “Capitoa” no Governo
Quem governava Pernambuco, então, era por coincidência uma mulher: a portuguesa Dona Brites [Beatriz] de Albuquerque, viúva desde 1554 do donatário da Capitania, o afamado Duarte Coelho Pereira.
A "capitoa" Brites era irmã de outro nobre, Jerônimo de Albuquerque, cognominado "o Adão Pernambuco", pela, como direi, prolificidade que demonstrou em terras nordestinas. Ele veio a se casar com a índia tabajara Tindarena (ou Tabira), que, uma vez batizada, ganhou o nome de Maria do Espírito Santo Arcoverde, porque filha do cacique tabajarino Muirá-Uby ("arco verde"). E o casal em referência deixou uma enormidade de descendentes, que se espalharam pelo Nordeste e pelo Brasil, sendo os antepassados de muitas famílias, dentre as quais as dos Arcoverde e Albuquerque Maranhão.
A "capitoa" Brites procurava manter a paz com os indígenas, cujas revoltas combatia com mão de ferro, e faleceria cerca de um ano antes da fundação da Parahyba, para a qual também concorreu com o envio de homens, armamentos, víveres, índios mansos, alimárias e o que possível fosse reunir nesses tempos realmente bicudos.

Bem Antes da Capitania da Parahyba
Acontece que, quando da chegada dos irmãos da índia Iratembé a Olinda, achava-se em visita a Pernambuco, vejam só, ninguém menos que o próprio Governador-Geral do Brasil, António Salema (ou António de Salema).
Ouvindo toda a inacreditável história da própria boca dos guardiões da bela potiguara, e com ordens da Corte para não mexer no vespeiro das susceptibilidades indígenas, o Dr. Salema (pois era Doutor, sim!) não só determinou que a jovem fosse devolvida aos manos, de imediato, como lhes deu salvo-conduto para que regressassem à sua aldeia em perfeita segurança — vale dizer, sem serem incomodados pelos esbirros habituais, sempre a postos, e pelos súditos portugueses e seus agregados.
Relembre-se mais uma vez que, a essa época, ainda não havia a Capitania da Parahyba e, sim, duas Capitanias territorialmente contíguas: a de Pernambuco e a de Itamaracá. Mas essa última, ao contrário da outra, estava caindo pelas tabelas, degringolando, fracassando, além de se ter mostrado incapaz de prevenir e evitar os frequentes ataques dos bugres, do gentio, da indiada a postos avançados de Pernambuco.

Quem Foi Antônio de Salema
Esse luso-alentejano António de Salema não era pouca coisa, não. Licenciado em Leis, brilhou por breve tempo como latinista nos meios universitários lusitanos e, mais tarde, nas Cortes portuguesas, como desembargador da Casa de Suplicação. Retornaria a Portugal somente após o término de sua missão no Brasil-Colônia, lá exercendo ainda o cargo de desembargador dos Agravos.
O que mais nos interessa é que, na década de 1570, isto é, pouco antes dos acontecimentos aqui rememorados, António de Salema, de ordem do Rei Dom Sebastião I, fora enviado a Pernambuco, com uma alçada.

Melhor Ser Sem Parecer
Posteriormente, seria pelo mesmo monarca nomeado Governador de São Tomé — e, ainda depois, Governador do Rio de Janeiro [1574-1577], onde conquistou as fortificações dos corsários franceses e do gentio tamoio localizadas na área de Cabo Frio.
Sobre tais eventos, aliás, Salema escreveria uma obra, em português mesmo, apesar de ter outros trabalhos, em latim, a exemplo de seu comentário ao Codex De Fide Instrumentorum, e outro à célebre máxima do Direito Romano, segundo a qual Plus valet quod agitur quam quod simulate concipitur ["Mais vale o que é feito que aquilo que apenas parece ter sido feito"].

Desembargar = Retirar os óbices
Em tempo: o termo alçada (e Salema fora enviado, pelo Rei, a Pernambuco, chefiando justamente uma alçada) tinha, então, o sentido de Tribunal ambulante a percorrer aldeias e povoados, com o objetivo de julgar casos e pendências, numa espécie de pequena devassa, que podia até se sobrepor a autoridades judiciárias apenas locais. E o título de “desembargador” ainda tinha aquele sentido antigo e original de quem “desembarga”, isto é, de quem retira os óbices para que uma causa avance, tramite, chegue a um fim.
En passant, diga-se que esse mesmo Antônio de Salema — que igualmente integrou o Governo-Geral brasileiro reunificado na Bahia, a partir de 1578 — faleceria, em Lisboa, cerca de um ano depois da fundação da Parahyba, podendo-se visitar seu túmulo no Convento de São Francisco da capital portuguesa.

Em Português e Latim
Se eu fosse Vocês (ou tivesse o tempo que Vocês têm!), daria também uma boa olhadela no item “Antonius de Salema, Titulus de legitima agnatorum successione”, in K. II. 18, fólio 386, apud o Padre Guillermo Antolin, da Ordem de Santo Agostinho e correspondente da Real Academia Espanhola. Para facilitar: isto aí pode ser visto no volume IV do Catálogo de los Códices latinos de la Real Biblioteca del Escorial, com “una Imprenta Helénica y Pasaje de la Alhambra”, Madrid, 1916.
E este parágrafo serve igualmente para mostrar, mais uma vez, como os formados em Leis nas Coimbras & Salamancas da vida tinham que conhecer os Institutos, as Pandectas, os Digesta e o escambau do Codex Iustinianus, inclusive na parte referente à sucessão legítima dos parentes por linhagem masculina — além de os nobres e candidatos a cargos públicos serem obrigados, também em Portugal, a provar até certo grau de antepassados a legitimidade de sua... “pureza de sangue”.

Em Mamanguape, o Porto de Salema
Mais digressões, enquanto Vocês pacientemente esperam pelo desfecho da história da indiazinha Iratembé: em Mamanguape (PB), ficou bem conhecido o Porto de Salema, com grande movimentação de navios, entre os séculos XVII e XIX, para o escoamento de produtos oriundos de todo o Interior paraibano e também de cidades litorâneas — apesar de se saber que, nos termos da organização judiciária do passado, Mamanguape pertencia à Comarca da Capital, antes de ter sua própria Comarca.
O Porto de Salema passaria depois à jurisdição do município de Rio Tinto.

Outro(s) Apaixonado(s) pela Bela Índia
Mas voltemos, finalmente, depois de longa e procelosa espera, à história da bela indiazinha, que deixamos com seus manos, naquela volta de Olinda a Cupaoba.
No retorno, o trio — Iratembé e seus irmãos — deveria percorrer território relativamente extenso, da então capital pernambucana até o que hoje é o Brejo paraibano. Enfim, teriam os três, na segunda fase da volta, que passar por terras da então existente Capitania de Itamaracá.
À altura do rio Tracunhaém [do tupi recuzaém, "panela de formigas"], os índios tiveram que pernoitar no engenho fortificado do cristão-novo Diogo Dias.
O dono da fazenda (ou um de seus filhos) ficou vivamente impressionado ante a beleza da indiazinha, de modo que, na manhã do dia seguinte, seus irmãos não mais a puderam encontrar, apesar de todas as buscas. Protestaram, mas, frente à recusa de Diogo Dias e/ou dos seus de devolverem a moça, tiveram que voltar a Cupaoba — sem a irmã.
           
Franceses Instigam os Índios
Nem é preciso dizer da renovada e redobrada indignação do cacique Iniguaçu ao ouvir o relato dos filhos. Ainda mandou uma embaixada de paz a Tracunhaém, rogando pela devolução de Iratembé, mas lhe fizeram ouvidos de mercador.
Quem muito apreciou esses infortúnios do chefe índio foram os corsários franceses, que, a partir de Acajutibiró, a Baía da Traição, tentavam a todo custo derrotar os colonizadores portugueses, a fim de prosseguirem com o tráfico de pau-brasil e de outros itens saqueados nas costas nordestinas.
Inteirando-se da história toda, tais piratas esmeraram-se em instigar os índios a se vingarem, com um ataque punitivo ao engenho de Diogo Dias — prometendo, eles mesmos, contribuírem, pela costa, com apoio de seus navios de pesada artilharia.

Sob Infernal Gritaria
O cacique Iniguaçu reuniu mais de mil guerreiros potiguares (e, diz-se, até mesmo tabajaras) e lançou mão de um estratagema para enganar os defensores do engenho Tracunhaém. Um pequeno grupo de indígenas simulou um ataque às paliçadas da fazenda. Vendo que se tratava de poucos índios, os colonos abriram os portões e saíram a campo aberto, a fim de massacrarem, conforme pensavam, os “ingênuos” atacantes.
Neste momento, saiu da mata circundante um autêntico “exército” de índios, fortemente armados e numa gritaria infernal, como era de seu uso e costume.
           
Matando Tudo o Que Respirasse
Na feroz luta que por horas se seguiu, os nativos literalmente massacraram a população do engenho, matando tudo o que respirasse e/ou bulisse: homens, mulheres, crianças, gado, aves, animais domésticos... Foi, realmente, aquilo que ficou conhecido na História nordestina como “a Tragédia”, “a Matança”, “a Hecatombe”, “a Chacina” ou "o Massacre de Tracunhaém".
Dizem os historiadores que, neste dia fatídico, morreram mais de 600 pessoas (612 ou 614, dependendo da fonte), com poucas baixas da parte dos índios. Ao que parece, escaparam com vida, por se acharem ausentes, apenas dois filhos do senhor de engenho Diogo Dias — um dos quais de nome Boaventura, que depois se destacaria na História da nascente Goiana (PE). Infelizmente, não se conhece o destino da indiazinha Iratembé.

Apavora-se a Corte Portuguesa
O mais importante de tudo, porém, é que a notícia desse sangrento ataque, com tantas vítimas humanas e tantos prejuízos materiais, causou impacto não apenas em Pernambuco, na Bahia e no Rio de Janeiro, mas também no próprio Conselho Ultramarino, em Portugal.
A Coroa portuguesa, assombrada, tomou providências para a defesa do território pernambucano. Dentr’outras severas medidas, extinguiu a Capitania de Itamaracá e mandou criar a Capitania Real da Parahyba, traçando-se os planos para a ereção da terceira cidade (criada com tal status) no Brasil-Colônia — que somente começaria a se erguer em 1585, recebendo o nome de Filipéia de Nossa Senhora das Neves.

Antes do Rei Filipe de Habsburgo
Em tempo: Acordo Ortográfico algum (especialmente esse, assinado sem nosso consentimento, isto é, sem que nós fôssemos ouvidos, cheirados, consultados) me fará escrever Filipeia em lugar de Filipéia. Entre muitas outras coisas, porque, digamos, um estrangeiro ficaria tentado a pronunciar filipêia, inadmissível absurdo!...
Mas, antes do surgimento da Filipeia de Nossa Senhora das Neves, o rei de Portugal era, por esse tempo em que floruit Iratembé, o décimo-sexto soberano luso e o sétimo monarca da Dinastia de Avis, Dom Sebastião I, conhecido na História portuguesa inicialmente como “o Desejado” e, depois, como “o Encoberto” ou “o Adormecido” (1554-1578, regnavit 1557-1578).

O Destino de Dom Sebastião
O próprio Dom Sebastião desapareceria — sem deixar o mais mínimo rastro e, pior ainda, com quase todos os principais nobres do Reino — na imprevidente e quixotesca “guerra dos três reis” que, muito moço e inexperiente, empreendeu contra os árabes, na célebre batalha de al-Qasr al-Kibr ou Alcácer-Quibir, Norte da África.
Como Dom Sebastião não deixara sucessores, a Coroa lusitana cairia (logo depois do interregno protagonizado pelo Cardeal-Infante eborense Dom Henrique) em mãos do Rei espanhol Filipe II, “o Previdente” [regnabat 1581-1598], que ocupou o trono português ou a Coroa unificada hispano-lusitana com o título de Filipe I.

Um Sujeito Realmente Ocupado
A Coroa portuguesa, unificada à Espanhola, caíra em mãos, portanto, do filho do grande Rei das Espanhas e, ainda por cima, Imperador do Sacro Império Romano-Germânico, Dom Carlos V de Habsburgo. Mas tem que ver que a mãe desse Filipe II d’Espanha e Filipe I de Portugal tinha por mãe uma portuguesa, Isabel [Elisabete], esposa do Rei-Imperador Carlos.
E não me perguntem, please, como é que Dom Filipe arranjava tempo para compatibilizar sua agenda, sendo, a um só e mesmo tempo, Rei d’Espanha e Portugal; rei de Aragão, de Castela, da Catalunha, da Ilhas Canárias, de Maiorca, de Navarra, de Galiza e de Valência, do Rossilhão, do Franco-Condado, dos Países Baixos (de onde surgiriam as atuais Holanda, Bélgica etc), da Sardenha, da Córsega, da Sicília, de Milão, de Nápoles, bem como dos territórios ultramarinos hispânicos e lusitanos da África (como Túnis, Orão et alia), da América (Brasil e colônias hispano-americanas) e da Ásia (como as Filipinas et caterva).
“Pacificando” os Índios Nordestinos
E o danado do homem, com todas essas responsabilidades nas costas, ainda achou tempo — só sendo mesmo filho do quinto Carlos habsbúrguico! — para ganhar em 1571, contra os turcos otomanos, a sanguinolenta batalha naval de Lepanto, da qual saiu com a mão esquerda inutilizada nosso considerado Cervantes.
Já para a “pacificação” (leia-se extermínio) dos índios ao Norte de Pernambuco, a Corte portuguesa enviou várias expedições... até que, em 1585, mais de uma década depois da horrenda carnificina em Tracunhaém, os lusitanos (ajudados pelos espanhóis, pois, como se viu, a Coroa portuguesa estava então sob o domínio da Espanha) conseguiram finalmente a paz com os índios tabajaras — já então por esses mesmos colonizadores tornados inimigos dos potiguaras.

Cherchez la Femme!
A fundação e a implantação inicial da Capitania paraibana marcou o avanço colonizador em direção ao Norte de Pernambuco. E iniciou o lento mas continuado combate (e o fatal massacre) contra os indígenas — não só tupis, mas também cariris [kiriri] e de outras etnias ditas “tapuias”.
Enfim, não só dos índios que habitavam o litoral, mas, também, daqueles aborígines tidos por mais atrasados, os do hinterland nordestino. Uns e outros, para resistir ao rolo-compressor dos invasores europeus, chegaram a criar uma “Confederação dos Cariris” ou “a Confederação dos Bárbaros”, na designação dos dominadores.
Toda essa bela, trágica e sanguinolenta história, como se viu, teve por... pivô uma mulher, a jovem índia Iratembé, filha do cacique Iniguaçu, bravo chefe potiguara, pai de outros guerreiros e de pelo menos uma principesca criatura, cujo nome se inscreve entre a História real e as lendas românticas do passado indígena regional.

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