Monday, December 15, 2014

TRIBUNAL DO SANTO OFÍCIO NA PARAÍBA

   
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EXCLUSIVO: O TEXTO DA CONFERÊNCIA DO DR. GUILHERME GOMES DA SILVEIRA D’AVILA LINS SOBRE A INQUISIÇÃO NA PARAÍBA

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Durante sua conferência, o Dr. Guilherme d’Avila Lins apresentou grande número de slides mostrando autos-de-fé (como este da foto), com a queima de "hereges" vivos e outras atrocidades da Inquisição. [Clique na foto, please, para ampliá-la]
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A Inquisição portuguesa foi um dos mais negros capítulos da História da Igreja Católica Apostólica Romana e da monarquia lusitana. Ainda assim, por incrível que pareça, e feitas as contas na ponta do lápis, mostrou-se bem menos atroz e criminosa que a Inquisição espanhola. [Clique na foto, please, para ampliá-la]
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O historiador Guilherme d’Avila Lins, é visto aqui, em último plano, à mesa dos trabalhos do IHGP, quando fazia a leitura de sua conferência sobre a Inquisição na Paraíba, numa fotografia da DruzzPress. [Clique na foto, please, para ampliá-la]
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O médico e historiador paraibano Guilherme Gomes da Silveira d’Avila Lins,
um dos maiores especialistas mundiais em História Colonial do Brasil, visto no IHGP, numa fotografia da DruzzPress, ao término de sua conferência. [Clique na foto, please, para ampliá-la]
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por Evandro da Nóbrega,
escritor, jornalista, editor
[druzz.judiciario@gmail.com]

Fotos: Da Internet e da DruzzPress, a agência noticiosa 
que reúne Tecnologia da Informação com as Humanidades 



Em fins de novembro do corrente ano, anunciei aqui que o Dr. Guilherme Gomes da Silveira d’Avila Lins, consagrado médico e historiador paraibano, iria fazer uma conferência imperdível, no IHGP, sobre a Inquisição na Parahyba do Século XVI, bem como sobre a sua recrudescência no Século XVIII.

Groucho Marx dizia: “Não freqüento clubes que me aceitam como sócio”. Digo algo parecido: “Não sou autor que se cite”. Mas eis que aqui quebro a regra geral, citando-me e, sim, reproduzindo frase do anúncio que então fiz, ao conclamar o leitor a comparecer à conferência do Dr. Guilherme no IHGP:

“Se Você tem algum compromisso marcado para as 17 h da próxima sexta-feira, 28 de novembro corrente, faça como eu: desmarque-o. Pois é justamente nesse dia e hora que o médico, historiador e acadêmico Guilherme Gomes da Silveira d'Ávila Lins estará proferindo conferência, na sede do IHGP (Instituto Histórico e Geográfico Paraibano) sobre ‘A Inquisição na Paraíba no Final do Século XVI e sua Recrudescência no Século XVIII’. E Você, claro, não vai querer perder isto por nada no Mundo, não é mesmo? Para que não haja dúvidas sobre o local da palestra: a sede do IHGP fica na Rua Barão do Abiaí, 64, centro de João Pessoa. A sessão será dirigida pelo presidente da entidade, historiador Joaquim Osterne Carneiro, e secretariada pelo historiador Adauto Ramos. [...] Deverão estar presentes não apenas os sócios efetivos do Instituto Histórico, mas também o público em geral, especialmente as pessoas interessadas neste atrativo tema da História Colonial luso-brasileira, a Inquisição (não apenas a do Santo Ofício, como também aquela mais do braço secular, adotada pelo Estado, seja na Espanha, seja em Portugal). E o Dr. Guilherme Gomes da Silveira d'Avila Lins é reconhecidamente, sem favor algum, um dos maiores especialistas mundiais em História Colonial do Brasil. Além de já haver publicado grande número de livros, é sócio correspondente do IHGB (Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro) e realiza frequentemente, no IHGP ou na Academia Paraibana de Letras, de que igualmente é membro, seminários sobre candentes (e polêmicos) temas da História.”

Num Congresso Internacional
Esta mesma palestra, o Dr. Guilherme d’Avila Lins a apresentou recentemente (outubro de 2014), a convite, em Recife, na UFRPE - Universidade Federal Rural de Pernambuco, durante a realização do II Congresso Internacional de Antropologia e História da Religião: Inquisição, Inquisições (Recife, 6 a 9 de outubro de 1914).
Como foi destacou no II Congresso Internacional, na capital pernambucana, "a História da Inquisição é um dos mais importantes períodos histórico-sociais sobre a qual a Academia deve analisar e interpretar. Em função das visitações do Santo Ofício ao Nordeste do Brasil, a Inquisição interferiu na subjetividade social e coletiva, estabelecendo instrumentos teológicos e jurídicos de exclusão social".
Daí sua permanência na nossa cultura e na História do Portugal, do Brasil, de Pernambuco, da Paraíba etc.

Uma Oportunidade de Ouro
Regressando a João Pessoa, o Dr. Guilherme d'Avila Lins se perguntou: "Se li esta minha palestra no Recife, por que não o fazer também para meus irmãos e irmãs paraibanos?" Ele é assim: gosta de disseminar o Conhecimento.

O Dr. Guilherme Gomes da Silveira d’Avila Lins já é bem conhecido dos leitores, mas nada custa relembrar-lhe os títulos: sócio efetivo do IPGH (Instituto Paraibano de Genealogia e Heráldica); sócio correspondente do extinto IHGCG (Instituto Histórico e Geográfico de Campina Grande); sócio correspondente do Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Norte (IHGRN); sócio correspondente do Instituto Histórico e Geográfico de Alagoas (IHGAL); ex-pesquisador de História do NDIHR/UFPB (Núcleo de Documentação e Informação Histórica Regional  da  Universidade Federal da Paraíba); sócio colaborador da Associação Paraibana de Imprensa (API); sócio efetivo da SOBRAMES-PB (Sociedade Brasileira de Médicos Escritores, seção da Paraíba) - Regional da Paraíba; membro honorário do Instituto Histórico e Geográfico do Cariri (IHGC); membro correspondente do Instituto Histórico de Campina Grande (IHCG); membro correspondente do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB); membro correspondente do Instituto Arqueológico Histórico e Geográfico Pernambucano (IAHGP); membro correspondente do Instituto Geográfico e Histórico da Bahia (IGHBA); membro correspondente do Instituto Histórico e Geográfico de São Paulo (IHGSP); membro correspondente do Instituto Histórico e Geográfico do Paraná (IHGPR); membro efetivo da Sociedade Paraibana de Arqueologia (SPA); membro efetivo da Academia Paraibana de Filosofia (APF); membro efetivo (fundador) da Academia de Letras e Artes do Nordeste - Núcleo da Paraíba (ALANE-PB); membro efetivo da União Brasileira de Escritores - Núcleo da Paraíba (UBE-PB); membro efetivo da Academia de Letras de Areia (ALA); acadêmico titular da APMED (Academia Paraibana de Medicina) e Professor Emérito da Universidade Federal da Paraíba.
Nesta última instituição, aliás, foi por muitos anos professor de Medicina, além de pesquisador na área da História. Mantém também um blog na Internet, sob o título de "Gravetos de História", acessível a partir do URL http://gravetosdehistoria.blogspot.com.br/

Abaixo, o Texto Completo da Palestra
O texto lido a 28 de novembro próximo passado, pelo Dr. Guilherme d’Avila Lins, para um auditório lotado, no IHGP, corresponde à sua conferência de encerramento do II CONGRESSO INTERNACIONAL DE ANTROPOLOGIA E HISTÓRIA DA RELIGIÃO, realizado em outubro no Recife (PE).

Na capital pernambucana, a leitura da mesma palestra se deu no dia 9 de outubro de 2014. E, nas duas oportunidades, o Autor fez sempre a advertência de que seu texto não acolhe a recente “reforma ortográfica” da língua portuguesa, que, acrescentamos nós, só veio trazer mais problemas à questão da ortografia da “última flor do Lácio, inculta e bela”.

Agora, sem mais delongas, a íntegra da conferência:

A Inquisição na Paraíba no final do Século XVI
e a Recrudescência no Século XVIII


Guilherme Gomes da Silveira d’Avila Lins                                                       


Entendo que a Inquisição, instituição emanada da Igreja Católica, sob seus mais variados modelos evolutivos (Medieval, Espanhol, Português e Romano), delineou um dos capítulos mais negros da história ocidental ao longo de novecentos anos (Século XII ao Século XIX), deixando nas populações por onde atuou um rastro de ódio, discriminação, intolerância, perseguição, impiedade, cinismo, tirania e morticínio.

Ao meu ver, reservadas as proporções, esse rastro só tem paralelo no Holocausto levado a cabo pelo nazismo durante a Segunda Guerra Mundial. Ademais, por muito tempo a Inquisição promoveu o obscurantismo ético, moral e intelectual da sociedade abarcada pela influência e poder da Igreja Católica. Enfim, a Inquisição cerceou também o desenvolvimento científico, assim como a liberdade de consciência e o cultivo das letras que foram sumariamente censuradas sob pena de excomunhão, mediante a inclusão de inúmeros autores e seus respectivos textos no Index Libro-rum Prohibitorum (Índice dos Livros Proibidos) em suas dezenas de edições sucessivas (desde 1564 até 1948), somente abolido no ano de 1966 pelo Papa Paulo VI.

A nós no Brasil tocou mais de perto a Inquisição Portuguesa, em particular o Tribunal do Santo Ofício – Inquisição de Lisboa (1536-1821), de onde procedeu sua atuação nesta terra. Aliás, a título de curiosidade o primeiro Auto da fé de Lisboa só ocorreu em 20 de setembro de 1540 e a Inquisição veio a ser oficialmente extinta em Portugal através de um decreto datado de 31 de março 1821. De todo modo, ainda hoje o Vaticano alberga oficialmente uma instituição sucedânea da Inquisição (bastante diluída e circunscrita) sob o nome de Congregação para a Doutrina da Fé (1965).

Dessa maneira, de um modo geral, quando se fala do duradouro poder da Inquisição e das paralelas relações da Igreja Católica com o mundo ocidental sob seu alcance, a história da humanidade cumpriu uma deplorável e triste ironia: o catolicismo parecia ter esquecido que o próprio Cristo disse “Amai uns aos outros, assim como Eu vos amei” e também esqueceu que nos primeiros tempos os neoconversos cristãos foram transformados em presas favoritas do politeísmo do Império Romano até Constantino, todavia mais tarde a Inquisição, exercendo a função de defensora da fé cristã e da Igreja Romana, veio a se constituir durante séculos na grande predadora dos conver-tidos compulsoriamente ao catolicismo ou dos católicos pecadores.  

A Inquisição no Brasil, ainda no primeiro século da sua colonização, independente de alguns poucos casos preliminares e isolados, envolvendo moradores dessa terra, marcou o início propriamente dito de suas atividades regimentais através da Primeira Visitação do Santo Ofício às partes do Brasil (1591-1595) que se estendeu então às Capitanias da Bahia, Pernambuco, Itamaracá e Paraíba. Com esse objetivo o Arqui-duque Cardeal Alberto de Áustria, Inquisidor Geral do Reino e Vice-Rei de Portugal e seus Senhorios, através de Comissão datada de 26 de março de 1591 (Lisboa), nomeou para o cargo de Visitador o Licenciado Heitor Furtado de Mendoça (à espanhola), Capelão Fidalgo do Rei e do seu Desembargo, Deputado do Santo Ofício. Este ficou responsável pela colheita e condução de todos os depoimentos prestados pelos mora-dores nas terras visitadas do Brasil, depoimentos estes devidamente lavrados em ata pelo respectivo notário. 

Nessa ocasião o poder do Visitador (assessorado por religiosos que formavam um tribunal local) não foi ilimitado. Para os pecados ou “crimes” mais graves ele deveria abrir o Processo, prender o “culpado” e enviá-lo ao Tribunal do Santo Ofício – Inquisição de Lisboa para julgamento “em final”. Nessa primeira Visitação os julgamentos “em final” com suas respectivas sentenças atingiram apenas os “crimes” de menor gravidade, que se enquadravam na chamada abjuração de leve, tais como frases heréticas, blasfêmias, bigamia, práticas sodomíticas além de outras, configurando os Processos sem Penitência Pública (com sentenças cumpridas perante a Mesa do Santo Ofício) e os Processos com Penitência Pública (cujas sentenças se-riam cumpridas em dias santificados ou ainda aos domingos, além dos Autos da Fé reservados aos casos mais graves da abjuração de leve). A propósito, a então Vila de Olinda, cabeça da Capitania de Pernambuco serviu de palco para esses espetáculos públicos dantescos entre 1594 e 1595, realizando-se aí ao menos dois Autos da Fé (em 9 de outubro de 1594 e 10 de setembro de 1595).

Lembremo-nos que os depoimentos relativos à Primeira Visitação do Santo Ofício às  partes do Brasil já estão disponíveis em letra de forma desde a primeira metade do Século XX, pois as Confissões da Bahia 1591-92 foram inicialmente publicadas por iniciativa de João Capistrano [Honorio] de Abreu (1.ª ed. 1922; 2.ª ed. 1935), a que se seguiu uma nova edição em 1997 organizada pelo Prof. Ronaldo Vainfas. Por sua vez, as Denunciações da Bahia 1591-593 foram igualmente publicadas por      Capistrano de Abreu (1925). Com a morte de Capistrano coube a Rodolpho [Augusto de Amorim] Garcia publicar em 1929 as Denunciações de Pernambuco 1593-1595 (abrangendo as Capitanias de Itamaracá e da Paraíba). Anos mais tarde, em 1970, o Prof. José Antonio Gonsalves de Mello [Neto] editou as Confissões de Pernambuco 1594-1595 (incluindo também as Capitanias de Itamaracá e da Paraíba). Por fim, estes dois últimos títulos foram novamente impressos em 1984 constituindo uma edição conjunta sob o título de Denunciações e Confissões de Pernambuco 1593-1595 (contendo igualmente as Capitanias de Itamaracá e da Paraíba), cujo editor foi o próprio Prof. José Antonio Gonsalves de Mello [Neto].

Atualmente uma gama de documentos originais da Inquisição de Lisboa referentes ao Brasil (em boa parte manuscritos, além de outros mais tardios já então impressos, abrangendo os Séculos XVI, XVII e XVIII, arquivados na Torre do Tombo - Lisboa), se encontram já digitalizados e estão, portanto, acessíveis para estudo. Vê-se aí grande número de Processos do Santo Ofício da Inquisição de Lisboa, inclusive os relativos ao Brasil que estão sendo igualmente digitalizados, o que significa um incomensurável avanço para a pesquisa nesta área. O mesmo pode ser dito das Listas dos Autos da Fé da Inquisição de Lisboa.

No que diz respeito à Capitania da Paraíba os seus moradores, naturais ou não daí, foram atingidos pelas garras da Inquisição num crescendo de perseguição ao longo daqueles três séculos, tendo atingido o auge durante o Século XVIII.

Não seria justo prosseguir esta exposição sobre a Inquisição na Paraíba e, de um modo geral, no Nordeste, sem antes destacar alguns nomes de primeira grandeza que a par-tir da segunda metade da centúria passada vêm oferecendo substanciais contribuições neste sentido, ao contemplar o período que vai desde o final do Século XVI até o Sé-culo XVIII (inclusive). Dentre eles nomino o já mencionado Prof. José Antonio Gon-salves de Mello [Neto], a Prof.ª Anita [Waingort] Novinsky, o Prof. José Gonçalves Sal-vador, a Prof.ª Sonia Aparecida de Siqueira, o Prof. Arnold Wiznitzer, o Prof. Ronaldo Vainfas, o Prof. Bruno Feitler, o Prof. Luiz [Roberto de Barros] Mott, o Prof. Carlos An-dré Macedo Cavalcanti e o historiador Flávio Mendes Carvalho. Também não se pode esquecer aqui o nome de Zilma Ferreira Pinto, estudiosa dedicada da Inquisição na Paraíba.

Cumpre assinalar ainda que já na primeira metade do Século XIX o então futuro Barão e Visconde de Porto Seguro, Francisco Adolpho de Varnhagen, fez publicar no Brasil na hoje chamada Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (então denominada Revista Trimensal de Historia e Geographia, Tomo VII, N.º 25, 1845, p. 54-86) uma pes-quisa pioneira no Brasil, intitulada EXCERTOS de varias listas de condemna-dos pela Inquisição de Lisboa [nos Autos de Fé], desde o anno de 1711 ao de 1767, comprehendendo só os Brazileiros, ou Colonos estabelecidos no Brazil

Nestas listas de cristãos-novos verifica-se que cerca de 219 moradores do Brasil foram cruelmente atingidos pela Inquisição (Este pesquisador não achou a parte que vai de 9 de Julho de 1713 até 17 de Fevereiro de 1716) tendo sido aí assinalados 44 moradores da Capitania da Paraíba (dois dos quais foram atingidos duas vezes e nesta soma pude acrescentar mais 3 pessoas que haviam passado despercebidas na mesma fonte utilizada), representando assim mais de 21% de toda a amostragem aí arrolada. Além disso, a ilustre Prof.ª Anita Novinsky também adicionou mais 106 pes-soas à mesma relação de cristãos-novos atingidos e condenados pela Inquisição na Paraíba ao longo do Século XVIII (Anita Novinsky – Inquisição. Rol dos Culpados. Fontes para a História do Brasil/Século XVIII. Rio de Janeiro, 1992; IdemInquisição. Inventários de bens confiscados a cristãos novos/Século XVIII. Lisboa, 1976). 

Por sua vez o destacado pesquisador Flávio Mendes Carvalho conseguiu aumentar ainda mais essa relação com outros 11 cristãos-novos da Paraíba durante o mesmo período (Flávio Mendes Carvalho – Raízes Judaicas no Brasil. O Arquivo Secreto da Inquisição. São Paulo, 1992). Só no Século XVIII essa lista chegou a mais de 160 cristãos-novos e aí se vê inúmeras famílias abrangentemente atingidas, incluindo seus descendentes, ascendentes e colaterais condenados a penas perpétuas e degradantes ou ceifados em vida por professarem a Lei de Moisés. Enfim, durante o Século XVIII as sentenças desses cristãos-novos (Paraíba) foram em geral muito mais severas do que as aplicadas no final do Século XVI.

Começo a passar em revista aqui a Primeira Visitação do Santo Ofício à Paraíba (1595), que corresponde à investida menos feroz da Inquisição a esta terra, apesar de certas vozes pouco fundamentadas afirmarem diferentemente. Depois de terminar a Visitação na Bahia e tendo resolvido interromper naquela ocasião a de Pernambuco a comitiva do Licenciado Heitor Furtado de Mendoça dirigiu-se por terra (e não por mar, como já tenho visto algures) para a Capitania de Itamaracá e daí, também para a Capitania da Paraíba. Enfim, chegaram a esta terra no dia 06 de janeiro de 1595. Dois dias depois foi celebrado o Auto da Santa Inquisição na Capitania da Paraíba e no dia 09 seguinte os depoimentos dos moradores começaram a ser prestados até o dia 24 do mesmo mês. Dessa maneira, com menos de quatro semanas de permanência na Paraíba, a comitiva do Visitador já havia encerrado aí seus trabalhos, retornando a Pernambuco em 29 de janeiro de 1595 para dar continuidade à sua Visitação.

Devo já explicitar que não pretendo aqui esmiuçar em toda a extensão a questão referente ao título da minha alocução, nem isto seria possível no espaço de tempo dis-ponível. Ater-me-ei, sim, apenas a determinados aspectos substanciais da Inquisição na Paraíba a partir do final do Século XVI, aproveitando inclusive a oportunidade para também assinalar alguns importantes senões bastante recorrentes sobre esta matéria, os quais têm sido observados nos últimos anos, divulgados principalmente por autores autóctones munidos de discutível rigor metódico __ em que ou não interpretaram de maneira adequada as fontes necessárias ou até as dispensaram __ preferindo a mera repetição de certas notícias pouco fidedignas de penúltima água, procedimento, sem dúvida, bem mais cômodo.

A esta altura considero bastante oportuno não perder de vista que, em janeiro de 1595 quando a Inquisição chegou à Paraíba, a conquista formal do seu território ainda não tinha completado dez anos e já contava com sete engenhos de açúcar situados na várzea do rio Paraíba, onde se concentrava o grosso da população da Capitania du-rante a maior parte do ano. Por sua vez, a cabeça dessa Capitania, a Cidade Filipéia de Nossa Senhora das Neves (assim denominada a partir de 1588), era uma pequena urbe cuja população permanente atingiria então algo em torno de 150 moradores distribuídos em cerca de cinco ou seis diminutas ruas. Isto nos permite dizer, por apro-ximação, que a população total dessa Capitania (excetuando os índios) deveria orçar seus 700 a 750 habitantes.

Nesse cenário é que exatas 16 denunciações foram prestadas por 15 denunciantes ao Licenciado Heitor Furtado de Mendoça, já que uma das depoentes, Maria Salvadora, cristã-velha, casada, de 45 anos de idade, que estava degredada no Brasil, denunciou duas vezes. A propósito, contam-se aí 4 mulheres, todas cristãs-velhas, e 11 homens, dos quais 10 cristãos-velhos (2 deles religiosos, sendo um secular e outro regular da Ordem dos Frades Menores) além de um meio cristão-novo chamado Antonio Tho-maz, solteiro de 25 anos de idade que, aliás, também foi aí denunciado pelo cristão-velho Domingos Ferreira, soldado, solteiro de 25 anos. Foram assim denunciadas cerca de 30 pessoas de ambos os sexos em que se contam pelo menos 8 cristãos-novos, dentre eles a famosa Branca Dias (que havia morado em Pernambuco e que já era defunta desde cerca de 1580).

De todo modo considero adequado, portanto, excluir dessa relação de denunciados os já então falecidos e os que não mais residiam nem jamais vieram a residir na Capitania da Paraíba. Assim procedendo, restam apenas 14 pessoas denunciadas, as quais na-quela ocasião estavam realmente vivas e moravam efetivamente nessa terra. Neste último grupo (autêntico) de denunciados11 homens (3 cristãos-novos além de 8 cristãos-velhos) e 3 mulheres (1 cristã-velha além de 2 cristãs-novas, mãe e filha com cerca de 10 anos de idade).

Quanto às ditas 3 mulheres denunciadas, a cristã-velha Maria Simões foi acusada de bigamia da mesma forma que seu marido, adiante assinalado; já as outras duas cristãs--novas (mãe e filha), estas foram alvo de uma remota presunção de judaísmo sem pro-va cabal. No que toca àqueles 11 homens denunciados, temos 2 casos de sodomia (sendo 1 cristão-velho e 1 índio), 3 casos de bigamia (sendo 2 cristãos-velhos e 1 ou-tro que nada sabia informar a respeito) 6 casos de heresia (sendo 1 cristão-velho, 3 cristãos-novos e 2 outros sem a dita qualificação). 

Dentre os homens denunciados na Paraíba sobressai o cristão-velho Antonio da Costa de Almeida, Escrivão da Fazenda Real da Capitania (casado com a cristã-velha Maria Simões, já mencionada e também alvo da mesma acusação), o qual só na Paraíba foi denunciado seis vezes por conta da bigamia. Aliás, no seu caso há uma respeitável porém equivocada informação, segundo a qual Antonio da Costa de Almeida era “Governador” da Paraíba, cargo que na rea-lidade ele jamais exerceu; nesse tempo o Governador Capitania da Paraíba era Feliciano Coelho de Carvalho (1592-1600) [Guilherme Gomes da Silveira d’Avila Lins - Governantes da Paraíba no Brasil Colonial. Uma revisão crítica da relação nominal e cronológica (1585-1808). 2.ª ed. João Pessoa, 2007]. 

Enfim, é possível constatar que mesmo depois de tantas acusações de bigamia, Antonio da Cos-ta de Almeida continuou a exercer seu cargo de Escrivão da Fazenda Real nessa terra (1596, 1598, 1599), portanto, parece ter conseguido uma sentença bastante suave ou até teria se livrado dessas acusações (Livro do Tombo do Mosteiro de São Bento da Paraíba. Recife, 1947, fól. 88v., fól. 89, fól. 89v., fól. 106v., fól. 142v.). O mesmo pode ser dito em relação à sua esposa, igualmente bígama.

Ademais nessa mesma Visitação, durante o período de quinze dias de Graça conce-didos à Capitania da Paraíba, o Licenciado Heitor Furtado de Mendoça ouviu também 9 confissões feitas por 2 mulheres (as cristãs-velhas Maria Simões e Cecília Fernandes) e 7 homens, dos quais 5 cristãos-velhos (Manuel Barroso, Pedro Álvares, Antonio da Costa de Almeida, Fulgêncio Cardoso e Domingos Ferreira), além de 1 cristão-novo e mameluco (Francisco Lopes da Rosa) e 1 soldado castelhano que não sabia dizer se era ou não cristão-velho. Dentre estes há 4 confitentes que também figuram entre os de-nunciados (sendo 1 mulher, a cristã-velha Maria Simões, e 3 homens , dos quais 2 cris-tãos-velhos, Antonio da Costa de Almeida e Pedro Álvares e 1 cristão-novo e mame-luco, Francisco Lopes da Rosa).
No que diz respeito à Primeira Visitação da Inquisição à Paraíba (1595) é oportuno já retificar uma determinada afirmativa (tão conhecida nessa terra quanto equivocada), a qual já tive a oportunidade de trasladar anteriormente: “a primeira visitação do Santo Ofício fez-se tão rigorosa [???] que alcançou o vigário da freguesia de N. S. das Neves [???]. Acusado de ascendência árabe [???] e práticas judaizantes [???], o padre João Vaz de Salem [Leia-se padre João Vaz Salem], homem rico [?] e influente [?] teve seus bens confiscados [post-mortem e não pelo Santo Ofício]. Vários [???] desses rever-teriam [???] à ordem beneditina [???]” (Guilherme Gomes da Silveira d’Avila Lins - Uma apreciação crítica do período colonial na HISTORIA DA PARAÍBA LUTAS E RESISTÊNCIA. João Pessoa, 2006, p. 303 e seg.). 

Pois bem, por mais discutível que fosse o caráter do primeiro vigário da Paraíba (e o era), o padre João Vaz Salem não pode ser absolutamente visto como se representasse “uma espécie de síntese insólita do ecumenismo neste País, configurando, ao mesmo tempo, um sacerdote católico com origem moura e além disso judaizante”. Aliás, se o autor a que me reporto tivesse tido o cuidado de ler o depoimento desse vigário da Capitania da Paraíba ao Licencia-do Heitor Furtado de Mendoça no dia 23 de janeiro de 1595 veria que o padre João Vaz Salem era ali tão somente um denunciante, jamais um denunciado. Tampouco ele foi denunciado por quem quer que fosse noutro local daquela Visitação. Ali ele, expressamente, “dixe seer christão velho sem ter raça de christão novo [,] natural da Villa de Loulé do Reino do Algarve ...”. 

Nesta sua denunciação dois foram os acusados por ele: Manoel Dias, beneficiado da Igreja do Salvador, Matriz da Vila de Olinda (Per-nambuco), além de Antonio da Costa de Almeida, cristão-velho e Escrivão da Fazenda Real da Capitania da Paraíba. Continuando, se o autor daquela afirmativa ora questionada tivesse consultado as fontes competentes perceberia que o padre João Vaz Salem não era então um “homem rico e influente” na Paraíba, mas sim um homem inescrupuloso e de comportamento irresponsável pois costumava abandonar sua paróquia, às vezes por até seis meses num mesmo ano, a fim de prear índios com o propósito de vendê-los como escravos. 

Essa sua atitude muito pouco recomendável para um clérigo tornou-se insuportável nesta terra e “disto Se queixaram os officiais da Camera (da Cidade Filipéia de N. S. das Neves) a Sua Magestade, e ao Perlado (Prelado) Diogo de Coutto [Ouvidor da Vara Eclesiástica em Pernambuco]” (Livro do Tombo do Mosteiro de São Bento da Paraíba. Recife, 1947, fól. 92). Diante disso ele veio a sofrer sanções eclesiásticas, o que lhe valeu post-mortem o confisco do único bem de raiz que possuía (um terreno urbano com morada na Paraíba) por ordem da Câmara Apostólica de Pernambuco, em torno de 1599, e não por ordem da Inqui-sição. Tampouco esse único bem reverteu à Ordem Beneditina na Paraíba pois o padre João Vaz Salem jamais havia feito negócio com esta Ordem. O que ocorreu foi que a Câmara da Cidade Filipéia de N. S. das Neves veio a comprar aquela sua antiga morada à Câmara Apostólica de Pernambuco com o objetivo de doá-la à Ordem de São Bento e com isso tentar apressar o seu tão necessário estabelecimento efetivo na Paraíba.  

Por outro lado, sabemos muito bem que aquela célebre cristã-nova Branca Dias, antiga moradora de Pernambuco (já falecida desde cerca de 1580, bem como seu marido, o cristão-novo Diogo Fernandes (igualmente finado muito tempo antes dela), da mesma maneira que seus descendentes de primeira e segunda geração, constituíram talvez a família de cristãos-novos mais seriamente perseguida pela Inquisição no Brasil em fins do Século XVI e nos primeiros anos do Século XVII. Dessa maneira, não deixa de causar certa estranheza o fato de até hoje não se conhecer qualquer depoimento do Santo Ofício incriminando um filho da dita Branca Dias, o mercador e cristão-novo Jorge Dias da Paz, casado com a cristã-velha Maria de Góis, moradores na Paraíba em 1594. Ademais, em 1595 ele até esteve em Pernambuco para tentar ajudar sua irmã, a cristã--nova Brites Fernandes (aleijada e retardada mental), que recentemente havia sido presa pela Inquisição em Olinda.  Enfim, Jorge Dias da Paz já era falecido em 1601.

Agora é preciso esclarecer certos aspectos relativos a um particular morador da Paraíba no final do Século XVI. Trata-se do cristão-novo Diogo Nunes [Correia], irmão do opulento cristão-novo João Nunes [Correia] que residia em Pernambuco embora tivesse até atuado nas lutas de conquista da Paraíba, vindo depois a possuir bens de raiz nessa terra. O fato é que, juntamente com João Nunes e com outro irmão que residia em Portugal, Diogo Nunes era co-senhor da segunda fábrica de açúcar da Pa-raíba, onde morava, fábrica esta que tive a oportunidade de restituir a sua correta identidade, na verdade o engenho Santo André (1587-1588) e não a um dos dois em-genhos que existiram à margem do rio Tibiri, como havia suposto Rodolpho Garcia sem muita convicção (Guilherme Gomes da Silveira d’Avila Lins - Páginas de História da Paraíba. Revisão crítica sobre a identificação e localização dos dois primeiros engenhos de açúcar da Paraíba. João Pessoa, 1999). 

Além disso, pouco antes da chegada da Inquisição na Paraíba Diogo Nunes estava edificando um novo engenho em que era igualmente seu co-senhor. Pois bem, da mesma maneira que João Nunes, Diogo Nunes foi também atingido pela Inquisição, acusado de blas-fêmia em Pernambuco nos anos de 1593 e 1594. Foi então preso e sentenciado a sair em Auto da Fé na Vila de Olinda no dia 9 de outubro de 1594, “desbarretado, cingido com uma corda e com uma vela acesa na mão” para fazer abjuração de leve suspeito na fé. Ademais ele deveria ser instruído por um religioso a ser nomeado (José Antonio Gonsalves de Mello [Neto] – Gente da Nação. Recife, 1989, p. 191).

Analisemos, pois, aquela lista de denunciados na Paraíba em 1595. Embora os respectivos dados possam ainda admitir algum eventual reparo, cumpre citar aqui o cristão-velho Braz Francisco, carpinteiro, acusado de blasfêmia na Paraíba em 9 de janeiro de 1595, o qual foi preso pelo Visitador e sentenciado a sair no Auto da Fé celebrado em Olinda no dia 10 de setembro de 1595, desbarretado e descalço, cingido com uma corda e com uma vela acesa na mão para fazer a abjuração de leve suspeito na fé (José Antonio Gonsalves de Mello [Neto] – Gente da Nação. Recife, 1989, p. 194).

Mencione-se agora, por necessidade, o meio cristão-novo Salvador Romeiro (Proc. 28--11519) acusado de sodomia (e também de bigamia) por Joana Afonso, moradora na Paraíba, a 9 de janeiro de 1595, e que desde cerca de 1577 vivia degredada no Brasil por crime de adultério; tanto ela quando o denunciado eram oriundos de ilha de São Tomé (atualmente República Democrática de São Tomé e Príncipe). Pois bem, segundo um pesquisador hodierno de nomeada que rastreou importantes fontes primárias nessa área e até escreveu sobre a Inquisição na Capitania da Paraíba, o referido meio cristão-novo Salvador Romeiro foi sentenciado a sair em Auto da Fé... descalço, em corpo, com a cabeça descoberta, cingido com uma corda e com uma vela acesa na mão e [que] seja açoitado publicamente por esta vila [Ver-se-á adiante que esta vila é a de Olinda e que a data deve ser 9 de outubro de 1594] e [que] vá degradado oito anos para as galés do Reino, para onde será embarcado na forma ordinária” (Luiz Mott – "A Inquisição na Paraíba", in: RIHGP, 1999, N. 31, p. 71-96). 

Neste caso em particular é preciso retificar algumas interpretações textuais equivocadas por parte do ilustre au-tor em tela. Na verdade, mediante a leitura do Processo 28-11519 em epígrafe verifica--se primeiramente que o meio cristão-novo Salvador Romeiro, embora denunciado no dia 9 de janeiro de 1595 na Cidade Filipéia de N. S. das Neves, não era morador dessa terra e tampouco “Viveu algum tempo na Paraíba”. Ele apenas havia estado lá, inci-dentalmente, em determinada ocasião, onde encontrou Joana Afonso, sua conter-rânea da ilha de São Tomé, a qual veio a denunciá-lo mais tarde naquela última data. Aliás, em 9 de janeiro de 1595 ele, então já condenado, devia estar muito perto de cumprir sua sentença nas galés do Reino pois seu Auto de Entrega em Lisboa é do dia 12 de março de 1595. Enfim, observa-se que Salvador Romeiro, proveniente do Reino, chegou a Pernambuco na Urca Jonas a 19 de abril de 1594 (portanto bem antes da-quela denunciação de Joana Afonso). Mediante denúncia em Pernambuco foi lavrada uma ordem de prisão para ele no dia 27 de junho de 1594, tendo sido preso no dia 28 de junho de 1594 (já no dia seguinte). Sua sentença foi assinada em Olinda pelo Licenciado Heitor Furtado de Mendoça no dia 4 de agosto de 1594.

Registre-se a seguir o padeiro cristão-velho Balthazar da Lomba (Proc. 28-6366), cujo Processo também consultei, que foi acusado de sodomia praticada com diversos índios na Paraíba, entre eles o de nome Acauhy. O fato é que o denunciado mostrou-se en-tão muito arrependido e a Mesa do Santo Ofício foi bastante benevolente determi-nando que ele “... vá degradado sete anos para as galés do Reino, para as quais será embarcado preso na forma ordinária para nelas servir sem vencer soldo ... sendo proibido de retornar à Paraíba por justos respeitos e pague as custas dada na mesa da Visitação do Santo Ofício em Olinda de Pernambuco aos 16 de Março de 1595
Quanto aos demais denunciados daquela lista da Paraíba, temos o carpinteiro cristão--velho chamado Pedro Álvares acusado de bigamia, cuja sentença deve ter sido tão suave quanto a de outro cristão-velho já assinalado, Antonio da Costa de Almeida (Escrivão da Fazenda Real), acusado do mesmo crime, incluindo-se aí sua esposa, a cristã-velha Maria Simões, que recebeu a mesma acusação. Estendo ainda o mesmo raciocínio para Jerônimo Monteiro, igualmente acusado de bigamia.
Mencione-se agora os seguintes denunciados: o marinheiro Gonçalo Francisco acusa-do de blasfêmia, o pescador Diogo Lopes também acusado de blasfêmia, o cristão-no-vo Leônis de Pina acusado de blasfêmia, o meio cristão-novo Antonio Thomaz, acusa-do de blasfêmia, além do cristão-novo e mameluco Francisco Lopes da Rosa (Tabelião do Público, Judicial e Notas da Capitania da Paraíba), igualmente acusado de blasfêmia, cujas respectivas sentenças devem ter ficado circunscritas à abjuração de leve (pro-vavelmente sem penitência pública, como se pode ver adiante por alguns indícios), levando em consideração que este tipo de falta era de menor gravidade, bem como pelo fato de eles não figurarem entre os que cumpriram sentença com penitência pública. Por fim temos nessa mesma relação de denunciados a cristã-nova e mamelu-ca Gracia Luis (esposa do cristão-velho João Afonso Pamplona, Tesoureiro dos Defun-tos e Ausentes na Paraíba) e sua filha menor chamada Maria com nove ou dez anos de idade, as quais haviam sido alvo de uma suspeita pouco consistente de judaísmo. Não encontrei notícia sobre o resultado da sua denunciação mas é difícil acreditar que tivesse havido aí uma sentença mais significativa.

Vejamos agora a lista de confitentes na Paraíba em 1595 (os quais não figuraram tam-bém como denunciados), onde se pode observar as respectivas sentenças. Temos, por exemplo, o cristão-velho Manuel Barroso, o qual se confessou blásfemo e foi “man-dado confessar (seu pecado) e que traga por escrito”. Segue-se o soldado castelhano João de Paris, bombardeiro do forte do Cabedelo, que não sabia se era ou não cristão- -velho, tendo confessado uma blasfêmia, após o que “foi-lhe mandado que se vá con-fessar e traga escrito e que seja mui atentado em suas palavras como bom cristão”. 

Em seguida vem o cristão-velho Domingos Ferreira que confessou uma blasfêmia, tendo sido “admoestado pelo Senhor Visitador com caridade e que as cousas que não enten-de as pergunte a pessoas doutas e religiosas que o encaminhem bem, e lhe mandou que se vá confessar e traga escrito a esta Mesa e quando o trouxer se lhe dirá o mais que há de fazer”. Continuando, o cristão-velho Fulgêncio Cardoso de 35 anos con-fessou um único ato de sodomia aos 13 anos de idade, tendo sido “mandado que se vá confessar e traga escrito a esta Mesa e admoestado que se afaste de ocasião  tão abo-minável e qualquer outra semelhante”. Para finalizar temos a confissão da cristã-velha Cecília Fernandes que havia proferido uma blasfêmia cerca de 10 ou 12 anos antes, por conta do que “foi admoestada pelo Senhor Visitador [e] que não diga mais tais nem outras semelhantes blasfêmias e mandada que se vá confessar e traga escrito” (Confissões de Pernambuco 1594-1595. Recife, 1970, p. 129, 133, 136, 137, 140.

Como se pode constatar através desses dados aqui expostos, diferentemente do que hoje se vê publicado várias vezes na Paraíba (sem critérios metódicos) não há como entender a Primeira Visitação do Santo Ofício a essa terra como muito “rigoro-sa”. Considerando-se sua índole, ela foi até razoavelmente branda na época.

O fato é que terminada a Primeira Visitação à Paraíba, ao longo do século seguinte a atuação do Santo Ofício se fez sentir ali de forma continuada porém sem chegar à per-seguição dramática da população local que foi vista na centúria subseqüente.

A partir da terceira década do Século XVIII a Inquisição protagonizou na Paraíba um papel muito mais trágico e cruel, colocando esta terra em triste destaque perante todo o restante do Brasil. Para se ter idéia da truculência do Santo Ofício na Paraíba ao longo do Século XVIII, a quase totalidade dos aí atingidos era acusada de judaísmo, embora se possa também ver casos de bigamia e feitiçaria.

Dentre aqueles mais de 160 cristãos-novos, atrás assinalados, ilustrarei com mais atenção 45 pessoas desse grupo (16 homens e 29 mulheres), sendo que também acessei aí 29 processos. Aliás, 1 deles que não figura naquela relação de 45 pessoas, o cristão-novo Diogo Nunes Tomás, o velho (Proc. 28-196), com 83 anos de idade, na-tural de Serinhaém (PE) e morador no engenho Novo (PB) foi acusado de judaísmo e preso em 6/10/1729, vindo a falecer a 5/12/1730 no cárcere em Lisboa.

A sentença mais pesada nesses casos analisados recaiu sobre a judaizante e cristã-nova Guiomar Nunes (Proc. 28-11772) com 37 anos em 1729, natural de Pernambuco e moradora no engenho Santo André (PB), filha de Antonio Dias e de Clara Henriques, e casada com o latoeiro cristão-novo Francisco Pereira (que recebeu a sentença de cárcere e hábito perpétuo), enquanto que sua esposa veio a ser relaxada em carne (queimada na fogueira) como convicta, negativa e pertinaz no Auto da Fé de 17 de junho de 1731. Observa-se também que, sob a acusação de judaísmo vieram a falecer no cárcere, por certo em função de maus tratos e torturas, os seguintes 5 cristãos-novos (3 homens e 2 mulheres) presos nas enxovias de Lisboa: José da Fonseca Rego (Proc. 28-8039) Ambrósio Nunes [da Fonseca] (Proc. 28-6288), Luiz de Valença Caminha, o moço (Proc. 28-298), Joana Gomes da Silveira [Bezerra] (Proc. 28-2325) e Tereza Barbalha de Jesus (Proc. 28-9397).

Pode-se verificar ainda que, dentre aqueles 45 cristãos-novos, encontrei apenas dois acusados de “culpas menores”, ou seja, obrigados apenas à abjuração de leve em Auto de Fé e, mesmo assim, um deles, o bígamo e cristão-novo Sebastião de Azevedo (Proc. 28-5579) recebeu uma sentença adicional de açoites pelas ruas de Lisboa além do degredo de 5 anos nas galés e outras penitências. Os demais dentre aqueles 45 cristãos-novos foram submetidos à abjuração de vehemente em Auto da Fé com sentenças de cárcere e hábito (sambenito) perpétuo ou a arbítrio do tribunal, além de outras penitências e do confisco dos bens, pagamento das custas processuais etc.

Ao se procurar interpretar com mais detalhes o grupo em epígrafe salta aos olhos o fato de que ao longo desse período a Inquisição de Lisboa cuidou de atingir cruel-mente diversos membros de várias das famílias de cristãos-novos da Paraíba, as quais ficaram assim dilaceradas e desestruturadas além de extorquidas no seu parco patri-mônio material (na maioria dos casos), bem como estigmatizadas indelevelmente por conta do ostracismo público, da perda da liberdade individual, do direito de ir e vir, do habitual convívio social e da liberdade de consciência.

O que acabo de dizer pode ser caracterizado na subseqüente ilustração de dez famílias de cristãos-novos da Paraíba ao longo do Século XVIII, cujos respectivos componentes atingidos pela Inquisição consegui recompor com bastante trabalho.

Em primeiro lugar temos a família do já citado cristão-novo Diogo Nunes Tomás, o velho (casado com a cristã-velha Vitória Barbalha [Bezerra, a velha]). Além dele pró-prio, o Santo Ofício atingiu os seguintes 6 filhos seus, além de 1 neta, na Paraíba: as duas filhas já citadas Joana Gomes da Silveira [Bezerra] (Proc. 28-2325), e Tereza Barbalha de Jesus (Proc. 28-9397), além de Guiomar Nunes Bezerra (Proc. 28-11773), Luiza Barbalha Bezerra (Proc. 28-816), Mariana Páscoa Bezerra (Proc. 28-3514) e Diogo Nunes Tomás, o moço (Proc. 28-8177), cuja filha Vitória Barbalha Bezerra, a moça (Proc. 28-3613) com 19 anos foi igualmente atingida pelo Santo Ofício.
Em segundo lugar sobressai também a família do cristão-novo Luiz de Valença Caminha, o velho, já então falecido, casado com Filipa da Fonseca, cujos 5 filhos se-guintes foram atingidos pela Inquisição: Estêvão de Valença Caminha (Proc. 28-2296) Maria de Valença, Guiomar de Valença (Proc. 28-4059), presa duas vezes, José da Fonseca Caminha (Proc. 28-298) e Luiz de Valença Caminha, o moço (Proc. 28-298).

Em terceiro lugar registro a família do cristão-novo Manoel Henriques da Fonseca, casado com a cristã-nova Joana do Rego, a moça (Proc. 28-09164), ambos presos por ordem do Santo Ofício, juntamente com os seguintes 3 filhos seus: José da Fonseca Rego (Proc. 28-8039), já citado há pouco, falecido no cárcere em Lisboa, Dionísia da Fonseca (Proc. 28-02422) e Isabel da Fonseca Rego (ou Isabel Henriques).  

Em quarto lugar assinalo a família do cristão-novo Luiz Nunes Fonseca, o velho, casado com Maria Tomás, aparentemente já então falecidos, cujos 3 filhos seguintes foram alcançados pelo Santo Ofício: Luiz Nunes da Fonseca, o moço (casado com Guiomar Nunes Bezerra (Proc. 28-11773), já citada), Ana da Fonseca e Clara Henriques da Fonseca, casada com Antonio Dias Pinheiro (são os pais da inditosa Guiomar Nunes, relaxada em carne em Lisboa).

Em quinto lugar menciono a família do cristão-novo Diogo Nunes Chaves, casado com Joana Nunes do Paço, aparentemente já então falecidos, cujos 3 filhos seguintes fo-ram presos pela Inquisição: Antonio Nunes Chaves (Proc. 28-10475), Florença da Fonseca (Proc. 28-00013) e Maria Franca da Fonseca.

Em sexto lugar lembro ainda a família do cristão-novo André Lopes, casado com Maria Henriques, aparentemente já então mortos, cujas 2 filhas seguintes também foram atingidas pelo Santo Ofício: Isabel Henriques e Filipa Gomes Henriques (Proc. 28-0001).

Em sétimo lugar pinço a família do cristão-novo Gaspar Nunes Espinosa, casado com Joana do Rego, a velha, já então mortos, ao que parece, cujos 2 filhos seguintes foram alcançados pela Inquisição: Joana do Rego, a moça (Proc. 28-09164), já citada há pou-co, casada com o cristão-novo Manoel Henriques da Fonseca, e João Nunes Tomás (Proc. 28-08033)

Em oitavo lugar registro a família do cristão-novo João Álvares Sanches, casado com Isabel da Fonseca, provavelmente já então mortos, cujos 2 filhos seguintes foram condenados pelo Santo Ofício: Cipriana da Silva (Proc. 28-4218) e Luiz Álvares

Em nono lugar arrolo a família do cristão-novo Tomás Nunes, casado com Serafina Ro-drigues, ao que parece já então mortos, cujas 2 filhas seguintes foram igualmente con-denadas pela Inquisição: Floriana Rodrigues (Proc. 28-12) e Filipa Nunes (Proc. 28-0009).

Em décimo lugar, finalmente, mostro a família do Escrevente cristão-velho Diogo Chaves, casado com a cristã-nova Luiza de Chaves, aparentemente já então falecida, cujas 2 filhas seguintes foram também condenadas pelo Santo Ofício: Joana do Rego (Proc. 28-3938) e Filipa Mendes.

Diante dessa pequena amostragem de cristãos-novos da Paraíba aqui analisada, ao longo do Século XVIII, comprova-se o efeito devastador do Santo Ofício sobre as suas famílias, como um todo, nessa terra. Além disso, não se deve esquecer que em geral cada uma dessas famílias de cristãos-novos estava entrelaçada com as outras por via do casamento entre seus respectivos membros.

Isto posto, espero ter aqui salientado alguns dos aspectos mais patentes da truculência e da gravidade com que o Santo Ofício tratou a população de cristãos-novos na Paraíba ao longo do Século XVIII, dando aí todas as demonstrações de que esse Ofício nada tinha de Santo nem jamais veio a ter.
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