Saturday, March 04, 2006

PARA O DIA INTERNACIONAL DA MULHER

Néia, ao encerrar mais um turno de trabalho no Kokota's,
e já trocada, isto é, sem a farda do expediente diário,
numa foto de cerca de três meses atrás


EDNÉIA ERA UMA HOMENAGEM A TODAS AS MULHERES


Evandro da Nóbrega [Druzz],
escritor, jornalista, editor técnico & literário
[evandrus.anovercensis@gmail.com]

O artigo abaixo foi especialmente escrito para a publicação Empresarial Marcas & Marketing, a pedido dos editores Soliandra e Pedro Oliveira Alves


Ano passado, neste mesmo Dia Internacional da Mulher, o velho Druzz de guerra escreveu para Vocês, a pedido dos editores Pedro e Soliandra Oliveira, uma homenagem mais geral: um protesto de veneração e respeito às mulheres do Mundo. Permitam-me que, agora, homenageie uma mulher específica. Mas sem que este preito deixe de ser dirigido às meninas, às moças, às mulheres, às mães, às avós... enfim, a todas essas feminis guerreiras que não apenas nos trouxeram ao Mundo, como também nos agüentam ao longo da vida e, o mais das vezes, merecidamente nos sobrevivem.

Tendo em mira a generalidade das mulheres, regule-se porém o foco de modo que à frente do leitor reste apenas uma mulher.

Ei-la: seu nome é Ednéia.

Não importa o sobrenome: todos só a tratavam carinhosamente por Néia.

E Néia aqui representa todas as mulheres: a mulher patoense, a mulher paraibana, a mulher nordestina, a mulher brasileira, a mulher latino-americana, a mulher universal, a mulher histórica, a mulher essencial, a mulher imortal. Como o é minha primeira mulher, Bernadete Mariz; como o é a segunda mulher, Verônica Lúcia do Rego Luna; como o é minha filha Manuela Mariz-Nóbrega; como o é minha mãe, Dona Luzia Dantas da Nóbrega (uma menina de 81 anos de idade); como o são minhas incontáveis amigas do Orkut, do Gazzag, do Blogger, do MSN Spaces e de tantos outros loci cyberespacii; como o são a leitora, a sua digna mãe, sua preclara tia, sua estimada vizinha, sua querida irmã, sua excelsa filha, sua adorada netinha, sua inigualável bisneta...

A HOMENAGEM É PÓSTUMA

Por que render esta homenagem às mulheres em geral e a Ednéia em particular? Faço-a por haver chegado à conclusão de que, se eu não fizer, ninguém mais a fará. E digo logo: Néia infelizmente não pertence mais ao Mundo dos vivos. Faz poucas semanas que, apesar de não ter chegado nem aos 26 anos, foi-se embora para o andar de cima, aqui deixando muita admiração e saudades, amizades e queixumes, contrição e aquele sentimento de impotência diante da foice curva e fatal da Indesejada das Gentes.

De condição pobre, Néia já trabalhara em São Paulo, fugindo de uma das mais feias palavras tipicamente nordestinas: a necessidade. Ainda menina, intuiu ser dura a vida e que era preciso batalhar pelo cotidiano pão. Já adolescente, não agüentou a violência sudéstica e retornou à PB, sigla de Pequenina & Brava, adjetivos que também a definiam. Após prestar serviços em lanchonetes pessoenses, viu-se logo "descoberta" pelo olho clínico do pessoal do Kokota's, um dos melhores estabelecimentos dedicados a atender quem tem fome e sede de vitualhas e beberagens.

“MEU” ESCRITÓRIO NOTURNO

Como classificar o Kokota's? Restaurante? Bar? Lanchonete? Um pedaço da cozinha do Paraíso Terrestre à beira-mar plantado, na Avenida João Maurício, diante do Atlântico? Chamo-lhe "meu eventual escritório noturno"... escritório superiluminado, com ótimos tira-gostos, vinho honesto, scotch digno de Jacinto Medeiros, Odilon Fernandes, Dada Novaes, Paulo Santos Coelho, Petra Ramalho Souto, José Mário Macedo, Emmanuel Rocha Carvalho e outros eméritos freqüentadores da bella tasca.

Um "escritório noturno" onde Você, a salvo do insuportável “som” dos crebocis dos decibéis, pode ler o jornal ou um livro inteiro, chupitando seu vinhozim, sem ser incomodado por seu ninguém. Mas não me incomoda, por exemplo, aquele simpático engraxate amigo que assistiu ao filme "A paixão de Cristo" e que por fina força vive a me pedir "gramáticas de aramaico e latim". Encasquetou que tem que aprender respectivamente "a língua falada por Cristo” e o outro idioma, “o usado pelos soldados romanos"... Além da parte interna com seu próprio ar-condicionado real, o Kokota's dispõe, em seu salão externo, daquilo que batizei de "ar condicionado central": a suave brisa que vem do mar fronteiro!...

Pois vos digo no Kokota's é que Néia foi trabalhar como garçonete. Garçonete, vírgula, dirão logo Onildo e Marinette Fernandes Paes de Carvalho Rocha, os felizes proprietários da atlântica casa de pasto. Garçonete que logo ganhou a confiança e simpatia de todos os habitués e de todas as habituées, para não falar, claro, dos donos e colegas de ofício. Você ainda ia saindo do carro e ela já estava com o ménu em mãos, toda sorridente, em posição de ballet, como se fosse dali a pouco saltar num pas-de-deux, puxando a cadeira procê se sentar à mais aprazível das mesas em disponibilidade.

ESCONDENDO A FEMINILIDADE

Néia amarrava e escondia bem os cabelos, usava um boné-pra-trás, verde, e envergava a farda do Kokota's de modo sui generis, escondendo deliberadamente as saliências e reentrâncias de seu talhe feminino. Mas nem assim deixava de ser feminil, com permanente sorriso espontâneo, leveza, graça, simpatia, rapidez no atendimento...

Seus olhos brilhantes, atentos, investigativos descobriam nos fregueses qualquer desejo etílico-gastronômico ainda nem mesmo glandular ou mentalmente formulado. Nessa pisada, e com pouco tempo, ganhou a amizade e admiração dos colegas e das colegas de trabalho. E tanto os ganhou que passou a namorada, primeiro; depois a noiva; e, finalmente, a esposa de um dos garçons de lá mesmo, o engraçadíssimo Cláudio. A todos Néia dava o exemplo: garçom trombudo ou garçonete trombuda são espanta-clientes e, no mínimo, fazem qualquer comida provocar desarranjos estomacais.

ENCANTANDO MARIA PAULA

Seu boné-pra-trás e uma larga faixa artisticamente largada na testa também larga lhe davam ar de oriental. Quem a visse talvez pensasse tratar-se duma praticante de artes marciais tipo caratê, judô, jiu-jitsu. Não era nada disto, non: a moça apenas descendia, e com muito orgulho, de nossos ancestrais indígenas nordestinos, disto havendo a prova adicional do cabelo liso, pretíssimo, característico.

Essas naturais bondade e prestatividade, simpatia e candidez d’alma encantaram desde o início os filhos de Marinette e Onildo: o campeão de surfe Vinicius (e sua mulher Danielle); Onildo Filho (e sua mulher Ana); e Lara. Para não falar das netas Camilla (com o namorado Pablo e recém-aprovada para Direito), Maria Paula (esta guria é energia pura e fogo-na-roupa!) e Ana Luísa, ainda pequenina. Néia caiu nas graças, ainda, de assíduos freqüentadores & freqüentadoras, quais a simpaticíssima Lóla e as quase incontáveis irmãs de Marinette.

ESTUDOS & SONHOS

Aí Néia botou na cabeça ser eu uma espécie de intelectual com quem podia conversar os mais inimagináveis assuntos sub solem. Vez por outra, em noites de menor movimento no Kokota's, achegava-se reverentemente da mesa e, mantendo aquela educada distância física e social de quem sofreu nas universidades da vida, fazia perguntas, conversava, queria saber de tudo, aprender, descobrir o que seria melhor para si, para os seus, para os outros... Ria muito e, forçoso é dizê-lo, exercia o democratíssimo direito de contar e ouvir piadas, no humorismo apropriado àquele kokotesco saloon, para gáudio do aparentemente circunspeto garçom Mak, redução do sob todas as formas imenso nome Maquemburgo...

Para compensar "os insuficientes anos de escola que tive", a jovem Néia estudava muito, lia muitíssimo, usava as poucas horas de folga da melhor forma possível: dedicando-se, entre outros estudos, às matérias de algo como o Telecurso Segundo Grau, como o podem comprovar o também kokotístico gerente Edinaldo e a esposa Cleonice. Seu sonho: “passar no Vestibular”. Queria se formar, ser enfermeira ou professora de crianças, confidências que fazia, entre outros, ao casal Silvana (também garçonete) e Naldo (pizzaiolo e entregador da casa).

EDNÉIA TRANSVESTINDO-SE

Néia fazia uma festa com qualquer livro que lhe déssemos. Ao fazer seus planos de uma futuro melhor, não pensava só em si, óbvio. Forçoso era ajudar no sustento da mãe e do filho, resultante do primeiro casamento, quando ainda adolescia.

De madrugada, terminado o serviço, Néia, tendo que voltar para casa, em Santa Rita, trocava a kokótica farda por suas roupas normais: o traje comum das moças faceiras. Era costume seu trazer, de cada vez, uma vestimenta diferente e de bom-gosto. Queria deixar claro que apenas momentaneamente, e por exigência do trabalho, é que escondera dos olhos do marido, sob uma roupa "batida" e aplastante, seus naturais encantos feminis. Concluído o turno, porém, já podia envergar novamente a "roupa comum". E lá se ia embora, toda pimpona e algo dançante, com o também juvenilíssimo marido Cláudio. Atesto: de cada vez, era mesmo um "tailleur" diverso, se assim posso chamar àqueles vestidos, alguns dos quais ela mesma criava, por economia.

CAFÉ COM BOLACHAS

Mas há sempre um porém. Um dia, para espanto geral, caiu doente. Fortíssima hemorragia. Internação. Os médicos viram: câncer do útero. Operada às pressas, escapou. Após uns meses de descanso, voltou a seu expediente no Kokota's. Mas nem ela, nem ninguém, nem mesmo os médicos sabiam: o insidioso mal já lhe passara aos rins... Novamente o hospital, todos preocupados. E, desta vez, não haveria retorno. Como disse, nem completara 26...

Aos amigos, ficou o consolo: partiu sem agonia. No leito da UTI, pediu à mãe café quente com cream-crackers, lanche que adorava. A enfermeira ainda molhou a bolacha no café, mas Néia disse sorrindo: “Não, assim não. Não é educado fazer isto. Cheira a coisa sebosa. Melhor trincar o biscoito cream-cracker no dente e sorver o café”. Disse-o e, quando o estava fazendo na prática, ainda sorrindo, deu o último suspiro. O café derramou-se no lençol, os pedaços de bolacha espalharam-se em sua bata hospitalar.

Era um anjo de bondade que, sem uma só queixa, morria tão prematuramente e de forma tão triste, nos braços da mãe e da enfermeira que já começara também a adorá-la. Pelo bem que procurou espalhar em vida, a humilde, esperançosa, terna e quase obscura Ednéia não merecia ser, nesta data, um dos símbolos da mulher local, nacional, mundial?


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