Saturday, June 25, 2005

PETRA "FRIDA KAHLO" SOUTO

por Evandro da Nóbrega,
escritor, jornalista, editor

evandro.da.nobrega@gmail.com

[Transcrito da revista Parahyba do Norte]


Embora agnóstico, surpreendi-me imaginando a sério se Frida Kahlo não se teria ultimamente encarnado, quem sabe para mais uma jornada terrestre, na talentosa professora, intelectual, crítica, articulista, cultora das literaturas brasileira e anglo-americana, atriz, mestre em Teoria Literária e tantas outras caleidoscópicas virtudes que constituem minha amiga Petra Ramalho Souto. Petra é quem mais entre nós conhece vida, obra, personalidade e tudo o mais sobre Frida Kahlo (1907-1954) — a imensa e trágica pintora judio-mexicana de origem húngara que duas vezes se casou com o célebre muralista Diego Rivera e que, estalinista, manteve breve romance com... Trótski. Não bastasse, Petra, intérprete de Frida Kahlo, é filha do amigo-irmão Petrônio Souto.

Para além dos Souto, Petra é Ramalho — como uma das principais dramaturgas do País, a paraibana Lourdes Ramalho. Que não se perca, assim, pelo(s) sobrenome(s). Passei a chamá-la Petra Frida desde que, nas conversas, evidenciou-se o soberbo conhecimento da primeira sobre tudo quanto dissesse respeito à segunda. Mas Petra não se deixa levar por essa “febre de Frida Kahlo” ou “fridamania” que se espalhou pelo Mundo, tornando a figura da sofrida artista uma máquina de fazer dinheiro com roupas e bonecas, livros, filmes e filmetes, adereços e penduricalhos, cópias de suas telas etc. Tal febre acentuou-se depois do filme protagonizado por Salma Hayek. E não à toa é Frida citada por 1,04 milhão de websites...

Fridóloga, não fridamaníaca, a doce Petra estudou (e estuda regularmente, com autêntica paixão) o legado de Frida Kahlo. Chegou ao elogiável nível ou estágio de escrever, dirigir — juntamente com André Morais e Gabriella Guedes, que compõem com ela o grupo teatral Bacantes da Philipéia — e interpretar o excelente espetáculo “Fragmentos de Frida”, com base nos escritos da desventurada pintora — e sob gerais aplausos. Neste excepcional trabalho, a bela Petra revela domínio de cena, garra de atriz do primeiro time, dramaticidade para dar e vender, tenacidade nos ensaios, vocação para a interpretação e para a dramaturgia... O segredo é que a moça trabalha séria e duramente para não incorrer nos pecados do amadorismo, da improvisação, do estrelismo. Petrônio já lhes recomendara, a ela e às irmãs: antes de mais nada, dominem a técnica da leitura e da escrita — e tudo lhes será mais fácil na vida. Petra também coleciona inúmeros livros sobre Frida, valendo lembrar que, nas últimas décadas, têm surgido ótimos livros sobre aspectos particulares da tão sangrenta quanto profícua existência da “malgré tout” para-surrealista Frida Kahlo. Mas poucos superam em riqueza de detalhes os de a) Hayden Herrera (“Frida”, de 1983, e “Frida Kahlo: The Paintings”, de 1991); b) Raquel Tibol (“Frida Kahlo”, 1993); c) Malka Drucker (“Frida Kahlo”, de 1991); e d) Martha Zamora (“Frida Kahlo”, de 1990). Não esquecer que seus diário e cartas vieram a lume em 1995.

Sem ver falhas que criticar no espetáculo escrito, dirigido e interpretado por Petra Ramalho Souto, algum desavisado poderia alegar absurdamente que no palco se apresentam desnecessárias, embora breves, cenas de seminudez topléssica, talvez como apelação extra-artística. Honni soit qui mal y pense! Nada mais distante da verdade. Quem sai para ver “Fragmentos de Frida” deve ter informação mínima sobre a artista de Coyoacán para saber que, nos momentos iniciais dessa representação dramática de pouco mais de meia hora, Petra encarna Frida, inclusive nas vestes, como se houvera saído exatamente daquele auto-retrato fridano denominado “A coluna quebrada” (foto em anexo), concluído em 1944, juntamente com o retrato de Dona Rosita Morillo e o quadro “Diego e Frida” — e justamente o ano em que ela começa a escrever seu célebre diário, de que Petra também se vale para montar os elementos essenciais do espetáculo.

E Petra, numa interpretação impecável, consegue transmitir ao público o drama daquela mulher já em franco declínio físico e delírio geral. Mulher de gênio, vítima de insuportáveis dores, resultantes de terrível desastre ocorrido muito antes: aos 18 anos de idade, em 17 de setembro de 1925, quando o ônibus que a levava à escola chocou-se com um bonde. Acidente de que saiu cruelmente dilacerada na coluna, pescoço, costelas, abdome, perna e pé direitos — condenada vitaliciamente a usar aparelhos de metal, a sucessivos abortos, a jamais ter filhos.

Para além disto, Petra também nos passa outras dimensões de Frida: espírito boêmio e alma sonhadora num corpo martirizado; triunfos criativos versus fracassos sentimentais; têmpera inquebrantável que, entre outras desgraças, permitiu-lhe suportar 35 dolorosas cirurgias, além da amputação de uma perna... Poucos terão sofrido tanto. E é a dimensão trágica desse suplício que Petra “Frida Kahlo” Souto consegue incorporar — o termo é este — em virtude de seu talento dramático e do inegável conhecimento que nos últimos anos reuniu, em detalhes, em torno do martírio dessa “paloma equivocada” ou santa cada vez mais popular ou pop de que muito ainda ouviremos falar.