Wednesday, July 12, 2006

QUÍON OU QUIÃO DE HERACLÉIA...









A SAGA POLÍTICA,

FILOSÓFICA & LITERÁRIA

DE QUÍON DE HERACLÉIA

Evandro da Nóbrega,

escritor, jornalista, editor técnico & literário

[evandrusdanobrega@gmail.com]

Nossa querida amiga mineiro-universal Adelaide do Julinho, de Belo Horizonte (também amiga, entre outros, do premiado escritor e jornalista brasileiro José Nêumanne Pinto e da professora Milu Duarte, também das Alterosas), indaga-nos sobre como escrever em português — da forma mais correta possível — o nome do personagem real, herói e nobre da Antigüidade normalmente grafado em inglês como Chion of Heraclea e, no grego original, como Χιων [Khiōn], tendo o KH o som do jota gutural espanhol de mujer e, quanto ao Ō, o som longo e característico do ômega grego.

Heracléia, por seu turno, diz-se, em grego, ‘Ηράκλεια [= Herákleia, com a aspiração, em virtude da presença do diacrítico indicativo do “espírito forte” antes da letra grega H, que não é um H latino, mas um E].

Tradicionalmente, publicações brasileiras confiáveis apresentam a forma “Quíon de Heracléia” [repetindo, em caixa-alta: QUÍON DE HERACLÉIA] — e concordamos plenamente com tal solução, uma das duas únicas possíveis. A outra, como adiante veremos, seria Quião de Heracléia.

MIRE-SE NO EXEMPLO DE QUIOS

Veja-se que a designação da ilha de Chios. Em grego, seu nominativo é Χίος [Khíos], com genitivo Χίου [pronunciado Khíou no grego antigo e Khíu no grego moderno]. Chios ou Hios tem sido quase sempre “traduzida” (transcrita ou transliterada) em português como Quios, de modo que o CH das transliterações gregas corresponde ao nosso QU, já que se insiste em dizer que o K é estranho ao alfabeto português e, diante das vogais E e I, não se pode usar o C com o som de K ou Q.

Não é necessário usar o acento agudo no I de Quios, porquanto não há a menor possibilidade de a palavra ser pronunciada como Quiós. Pode-se objetar que o acento, aí, apenas indicaria a acentuação original grega; mas isto não vem ao caso, porque, se fosse para apenas transliterar as letras gregas, guardando fidelidade ao original, dever-se-ia grafar Kíos...


O CASO ESPECÍFICO DE QUÍON

Em “Quíon”, o herói de Heracléia, é necessário colocar o acento grave no I para evitar a pronúncia “quión”. E vem a talhe de foice dizer isto, porque já chegamos a nos topar — em livros portugueses (de Portugal!) — com o nome de Quíon/Chion grafado como QUIÃO DE HERACLEA, QUIÃO DE HERACLEIA e até QUIÃO D'HERACLEA (sempre sem o acento agudo de -éia), da mesma forma que, por exemplo, o escritor Memnon se transformou em Menão de Heracléia.

Para grafarem eventualmente “Quião”, os lusitanos inspiraram-se sem dúvida na forma preferida pelos espanhóis, “QUIÓN DE HERACLEA”. Não que esteja errada a possível forma portuguesa “Quião” — muito pelo contrário: ela está perfeitamente dentro do espírito da língua, na mais pura tradição vernácula.

Mas, sem dúvida alguma, é preferível a forma Quíon de Heracléia [QUÍON DE HERACLÉIA], visto que mais em consonância com as estritas regras de adaptação dos nomes gregos, no português do Brasil.

* Em francês, diz-se Chion d’Héraclée;

* em inglês, Chion of Heraclea;

* em espanhol, Quión de Heraclea;

* em italiano, Quione d’Eraclea, da mesma forma que os italianos traduzem Trimalcão (Trimalchionis) como Trimalchione (ainda hoje, na Itália, mais exatamente na região de Veneza, existe a comuna de Eraclea);

* em russo: Хион Гераклеей (ou Гераклея, dependendo do caso declinativo); etc.

* Clearco assume várias formas nas línguas de Cultura:

* Kλεαρχoς [Klearkhos] em grego;

* Clearchus em latim;

* Cléarque em francês;

n Клеарх em russo (indicando a correta pronúncia grega a que acima nos referimos, Klearkhos);


E, para o caso de um dia Você precisar, eis como se grafa Heracléia em russo:
Гераклея, sabendo que, normalmente, as palavras iniciadas com H recebem um Г (gh) no russo e noutras línguas eslavas. Enfim, é preciso muito cuidado e raciocínio com todos esses nomes nas diversas línguas, porque o “Leônidas” que conhecemos de repente vira “León” ou espanhol ou simplesmente “Leo” em inglês...


QUÍON, CHEFE DE GRUPO SUICIDA

Quíon de Heracléia foi aluno de Platão e chefiou o grupo suicida que assassinou — em inícios do século IV antes da era cristã (mais exatamente no ano de 353 — o tirano Clearco de Heracléia [Heraclea Pontica, vale dizer, Heracléia do Ponto, na província da Bitínia. É a moderna cidade turca de Karadeny Ereglisi.

Quíon custou a decidir-se, mas finalmente resolveu matar o tirano, que, havia cerca de 12 anos, agia de forma tão abominável. Chegara ele a prender, acorrentados, 60 senadores, alguns dos quais pereceriam em terríveis sofrimentos.

O poder subira de tal forma à cabeça de Clearco que ele se julgava não mais um ser humano, mas rebento de Júpiter. Colocou num dos filhos o nome de Kerauno [= "o que lança os raios de Zeus, de Júpiter]".


EXISTIRAM DIVERSAS HERACLÉIAS

Quanto a Heracléia [= grego ‘Ηράκλεια = Herákleia], havia diversas cidades/colônias gregas com esta designação, em homenagem a Heraklés (Hércules):

* Heracléia da Lucânia (sul da Itália);

* Heraclea Minoa, na costa sul da Sicília;

* Heraclea Sintica, na Trácia (Macedônia Trácia);

* Heracléia da Jônia, na fronteira com a Cária, perto do sopé do monte Latmus;

* Heraclea-Cybistra, cidade helenística da Ásia Menor, hoje com o nome de Eregli, na província de Konya, Turquia;

* Heraclea Trathinia (ou Trachis);

* Heraclea Perinthus (ou apenas Perinthus);

* Heracléia nas ilhas Espórades, entre Naxos e Íos, hoje Raklia;

* Heraclea Pontica [= Heracléia do Ponto, isto é, da Anatólia, hoje na Turquia, com o nome de Karadeniz Eregli]; ficava na costa da província da Bitínia [= Bithynia], na Ásia Menor; é esta a Heracléia que aqui nos interessa, pois era de lá o Quíon [em grego Χίων = Khíôn = Chion em latim e inglês, pronunciando-se o kh de Khíon como o ch alemão ou o J espanhol de "mujer" e não como um simples K). Heracléia produziu grandes filósofos, políticos e escritores, como Mêmnon de Heracléia, Timóteo de Heracléia, Oxíatres de Heracléia et alii.


QUAL DOS TRÊS CLEARCOS?

Na Antigüidade, houve pelo menos três Clearcos mais conhecidos:

a) o general espartano e mercenário Clearco, filho de Rhamphias;

b) o filósofo peripatético Clearco de Soles (Solis);

c) e "nosso" Clearco de Heracléia, no Ponto.

A famosa enciclopédia bizantina Suda ou Suídas (grego Σοδα ou Σουΐδας, do latim suda, “fortaleza”) — obra coletiva que, em cerca de 20 mil verbetes, enfoca o mundo mediterrâneo por volta do século X — contém um texto especificamente intitulado “Klearchos”. O tirano Clearco de Heracléia é igualmente citado por vários autores clássicos, como Plutarco (nas Moralia); Diodoro Sículo (em sua Bibliotheca); Justino (na Epítome da obra de Pompeu Trogo; Polieno (em sua Stratatagemata); Menão (Mêmnon), em sua História de Heracléia; Ateneu (na Deipnosophistae); Isócrates, um de seus professores, na obra A Timóteo; e Eliano (Aelian), em sua obra em latim Varia Historia.


TAMBÉM FOI DISCÍPULO DE PLATÃO

Como Quíon, Clearco [latim e inglês Clearcus] foi também discípulo de Platão (e igualmente de Isócrates, que, evidentemente, não deve ser confundido com Sócrates). Uma passagem de Isócrates, aliás, diz que Clearco, quando com ele estudava, era “o mais gentil e mais benevolente dos homens”. Aparentemente, seu banimento e as intrigas políticas mudaram-lhe radicalmente o caráter...

Nascido por volta de 390 antes da era cristã, Clearco de Heracléia fundou uma biblioteca em sua capital, querendo compensar com a estima dos cidadãos as crueldades de que era acusado e que afinal levariam a seu assassinato.


VIVENDO APAVORADO

Em seus Discorsi, Maquiavel compara Clearco aos tiranos Pisístrato (ateniense), César (romano) e Tarqüínio, o Soberbo (último rei de Roma), para lembrar que Clearco se tornou governante de Heracléia aproveitando-se de dissensões entre facções políticas e, depois, tirou todas as liberdades do povo.

Como gente assim sempre teme a vingança dos prejudicados ou de suas famílias, lê-se numa obra de Baldassare Castiglione que o tirano Clearco, como supunha, devia ter mente bastante aterrorizada pela consciência de seus próprios malfeitos, mesmo quando ia à praça pública, ao mercado, ao teatro, a um banquete ou a qualquer outro local "perigoso".


COMO FOI CLEARCO DEGOLADO

E tinha razão Clearco em assim pensar, porque, segundo se diz, ele teria terminado seus dias da seguinte maneira: acordara firmemente encerrado, de maneira letal, num caixão de defunto...
Mas essa estória, se realmente circulou, era apócrifa; ou se tratou de metáfora criada por Castiglione, vez que Clearco foi re-al-men-te assassinado em seu próprio salão do trono (ou, segundo outros, nos degraus do templo da deusa local), quando recebia a visita de Quíon de Heracléia e de seu amigo Leônidas, fingindo-se querelantes numa demanda jurídica ou disputa pessoal. Enquanto o tirano conversava com um, ouvindo-lhe os argumentos, o outro o degolou.


MORTE CRUEL & HORRÍVEIS TORTURAS

Na palavras do escritor Menão de Heracléia, Quíon de Heracléia, filho de Matris, “homem de grande coração e parente pelo sangue do próprio Clearco”, conspirou — juntamente com Leão, Euxeno e muitos outros — para dar fim à vida do tirano. Diz ainda Menão: “O ferimento recebido (por Clearco) lhe valeu morte cruel”.

Os demais companheiros de Quíon demoraram a chegar ao local do assassinato, em palácio, de modo que, logo após eliminarem Clearco, Quíon e todos os seus companheiros foram massacrados pelos guardas do tirano. Mas os heróis só entregaram suas vidas após combaterem bravamente. Alguns viram-se presos e morreram sob horríveis torturas.


AS 17 CARTAS ATRIBUÍDAS A QUÍON

São atribuídas a Quíon de Heracléia, um dos assassinos de Clearco de Heracléia, 17 cartas certamente apócrifas, mas que sempre gozaram de grande popularidade, através dos mundos bizantino e europeu-medieval. Uns especialistas as datam de cerca do primeiro ou do segundo século de nossa era; outros situam sua redação no século IV depois de Cristo, mas sempre atribuindo sua autoria a um ou mais platonistas anônimos.

As cartas relatam, sob a forma de correspondências — ou melhor, de um “romance epistolar”, o único que nos legou a Antigüidade clássica —, os últimos seis dos doze anos de tirania de Clearco. É uma história muito interessante, que conquistou leitores em todos os tempos, especialmente nos tempos medievais.

Uma das melhores e mais modernas edições de tais cartas é aquela publicada, com revisão, tradução e comentários, por Pierre-Louis Malosse, sob o título de Lettres de Chion d'Héraclée, pela editora Hélios, como o primeiro volume da Coleção Cardo, com prefácio de J. Schamp e 131 páginas [Salerno, 2004, ISBN 88-88123-07-5].

CRONOLOGIA DAS EDIÇÕES DAS CARTAS

Mas, antes dessa edição francesa, registraram-se várias outras, de modo que se pode fazer a seguinte cronologia de tais edições:

1494 = a primeira edição impressa das cartas atribuídas a Quíon foi feita nesse ano, em grego, na famosa coleção aldina, isto é, a série de livros clássicos publicada em Veneza pelo impressor italiano Aldo Manúcio [Aldus Manutius] e depois continuada por seu filho e neto;

1583 = aparece, na cidade de Rostock, em separata, a primeira edição isolada das mesmas cartas, em grego, o que se deve ao editor Johannes Caselius;

1584 = as cartas são publicadas em latim, juntamente com uma tradução latina da obra Cyropaedia, de Xenofonte, também pelo editor Johannes Caselius;

1606 = reimpressão das cartas, agora em grego e latim;

1765 = com notas e índices, sai uma edição mais completa do
texto grego das cartas atribuídas a Quíon, num trabalho do editor J. T. Coberus, de Leipzig e Dresden; este texto mais volumoso só foi possível graças à recensão dos manuscritros das coleções mantidas pela família Médici;

1816 = em Leipzig, a cargo do editor Johann Conrad Orelli, sai uma das melhores edições das cartas, reunindo tudo o que de mais precioso surgira nas edições anteriores; a coleção de cartas saiu num volume só, juntamente com a edição que esse editor fez das obras de Mêmnon (Menão de Heracléia), justificando-se portanto que as duas obras saíssem num só livro; essa edição de 1816 traz o texto grego original, a versão latina de Caselius, as introduções (“Prolegomena”) de Andreas Gottlieb Hoffmann, o prefácio e notas de Coberus, Hoffmann e Orelli;

1951 = finalmente, aparece a primeira tradução inglesa das cartas,pois é nesse ano de 1951 que sai, em inglês, na cidade de Göteborg, a tradução anônima publicada por Ingemar Düring, da edição anteriormente citada (a edição de 1816, aparecida em Leipzig, acargo do citado editor Johann Conrad Orelli); a primeira edição em inglês intitulou-se Chion of Heraclea - A novel in letters, I; bem depois, Christian Gizewski faria a tradução alemã de algumas destas cartas, para colocá-las na Internet, mais exatamente no Portal “Alte Geschichte im WWW” [= História Antiga na Rede Mundial de Computadores], acessível pelo URL http://www.tu-berlin.de/fb1/AGiW/, onde se encontra, em alemão, o texto da carta 17, cujo teor traduziremosbem no final do presente artigo.

1977 = entre as páginas 29 e 37 do número 90 da Revue des études grecques, A. Billault publica o artigo “Les Lettres de Chion d'Héraclée”;

1980 = entre as páginas 649 e 751 do número 24 da revista Memorie della Classe di Scienze Morali e Storiche della Accademia Nazionale dei Lincei, na Itália, o crítico Q. Cataudella publica o artigo “Sull'autenticità delle lettere di Chione di Eraclea”;

1981 = Ainda na Itália, Q. Cataudella volta a divulgar um artigo sobre Quíon de Heracléia, desta vez no número 20 da revista Cultura e scuola; o artigo, que pode ser lido entre as páginas 78 e 84 dessa publicação, tem o título de “Revisioni e scoperte. Chione di Eraclea”;

1999 = sai a edição espanhola das cartas de Quíon, num volume que reúne, além delas, obras de Teofilacto, Simócrates, cartas rústicas, epístolas, a correspondência de Temístocles, em tradução, com introduções e notas, de Claudio Eliano e Maria Luísa del Barrio Vega [Biblioteca Clásica Gredos, volume 263, Madri, ISBN: 84-249-1996-3]; neste volume, segue-se o costume castelhano — para eles muito lingüisticamente natural, segundo reconhecemos — de chamar Quíon de Heracléia de "Quión de Heraclea";

2004 = surge na França a edição preparada por Jean-Pierre Malosse ainda no ano de 2004, na Bryn Mawr Classical Review (importante publicação do Bryn Mawr College, da cidade de Bryn Mawr, Pensilvânia, EUA), Owen Rodkinson recenseia o livro de Pierre-Louis Malosse, Lettres de Chion d'Héraclée.

UM TIRANO CRUEL NO PODER

Clearco subira ao poder entre 364 e 363 antes da era cristã, em seguida às desavenças entre os oligarcas e os líderes populares em Heracléia. Foi em decorrência de tais lutas e também pela desistência de dois generais gregos, anteriormente convocados para servirem como árbitros na disputa, que o aristocrata Clearco se viu chamado (como terceiro nome ou tertius) para governar essa importante cidade do Ponto.

Não tardou a se sentir bastante poderoso para instaurar feroz e duradoura tirania. Disto temos, entre outros, o depoimento do escritor e historiador romano Justino [Iustinus ou, au grand complet, Marcus Junianus Justinus]. Justino floresceu no século III, por volta de 350 depois de Cristo, e, no livro XVI de suas Epítomes, em latim Epitoma historiarum Philippicarum Pompei Trogi [= Resumo das Histórias de Filipe e seus sucessores, por Pompeu Trogo], nos diz como Clearco ascendeu ao trono de Heracléia do Ponto. O Ponto ou Pontus ficava na Anatólia e o Ponto Euxino ou Pontus Euxinius era o nome do Mar Negro.

JUSTINO & POMPEU TROGO

Essa Epítome de Justino é um resumo de obra bem maior e que se perdeu quase totalmente, a Historiae Philippicae et totius mundi origines et terrae situs, do historiador romano Pompeu Trogo, de enciclopédico saber.

Trogo, de origem gaulesa, viveu no primeiro século depois de Cristo, na era do imperador Augusto, quando realizou importante trabalho historiográfico para o conhecimento dos tempos helenísticos. Escreveu, por exemplo, a Historiae Philippicae, em quarenta e quatro volumes. A obra — cujo título pode ser livremente traduzido como Histórias de Filipe e seus sucessores foi assim chamada em alusão ao tema central: o império macedônico fundado por Filipe II.

UM TEMPO DE ATRIBULAÇÕES

Façamos também nosso resumo do que diz Justino:

* as massas, em Heracléia, exigiam a abolição das dívidas e a divisão das terras dos ricos, em violentas manifestações;

* o assunto foi longamente discutido no Senado, sem se chegar a uma conclusão;

* os líderes oligárquicos da cidade, vendo o povo agitar-se crescentemente em manifestações de rebeldia, pediram a interferência do general ateniense Timóteo, mas este recusou o convite;

* depois, pediu-se a assistência do general tebano Epaminondas, mas ele igualmente declinou da “honraria”;

* a única saída foi chamar Clearco, que havia sido por eles mesmos exilado de Heracléia do Ponto; mas tal era a necessidade de trazer a paz de volta à cidade que as lideranças heraclianas decidiram chamar para velar e zelar por sua terra aquele que fora proibido de pisar em seu próprio território;

* Clearco ficara arrasado com seu banimento e viu na dissensão entre os habitantes de Heracléia uma oportunidade de retornar e tomar o poder; primeiramente, reuniu-se em segredo com um inimigo de seus concidadãos, o rei do Ponto, Mitrídates (pai do futuro rei Mitrídates, o Grande); fez acordo com esse: se lhe assegurasse o retorno a Heracléia e lhe desse o poder de governador, como seu lugar-tenente, prometia-lhe trair a cidade, entregando-a;

* mas a traição que concebeu contra os conterrâneos se voltaria também contra o rei Mitrídates, logo após traído igualmente por Clearco; pois, uma vez aboletado no Poder, após retornar do exílio para servir como árbitro nas disputas entre os concidadãos, Clearco — no tempo acertado para entregar a cidade a Mitrídates — mandou aprisionar o próprio rei, durante festa de amigos; e só libertou do cativeiro o rei amigo transformado em inimigo após o pagamento de grande soma em dinheiro;

* de outra parte, Clearco agiu em Heracléia de modo diverso: se antes era considerado inimigo da cidade, agora retirava o apoio que dera à causa do Senado e a seus protetores — se tornava o patrono dos pobres, do povo comum, e inflamou a turba contra os benfeitores que lhe haviam dado o Poder;

* Clearco passou então a usar contra seus antigos protetores as piores atrocidades; num golpe hábil, reuniu a população e disse que, se não o quisessem como chefe supremo, se retiraria com seus soldados mercenários e o povo que resolvesse sozinho seus problemas com o Senado; a alternativa era lhe conceder plenos poderes — e o povo lhe deu a suprema autoridade;

* o Senado se rendeu a isto e seus membros não passavam agora, com as esposas e filhos, de escravos do tirano; Clearco não se deu por satisfeito e prendeu 60 senadores (os restantes fugiram), mandando acorrentá-los em masmorras;

* o povo, sempre enganado por aqueles que fingem lhe fazer o bem, rejubilou-se com a queda do Senado, sem saber que, mais tarde, haveria de sentir na carne o jugo do tirano; deu, assim, todo apoio a Clearco para que eliminasse os senadores; então, ameaçando os senadores prisioneiros com a morte, orçou bem alto o preço que cada um teria que pagar como resgate;

* depois de receber desses senadores prisioneiros altas somas de dinheiro, fingindo defendê-los secretamente contra a fúria popular, Clearco “lhes tirou a vida como antes lhes tirara suas fortunas” pessoais;

* sabendo, depois, que os demais senadores, os fugitivos, lhe estavam movendo guerra (pois agora contavam com a ajuda de várias cidades), Clearco libertou os escravos deles e obrigou, sob pena de morte, que suas esposas e filhas, pertencentes às mais honradas famílias, se casassem com tais ex-escravos; com isto, ganhou mais apoio popular e tornou impossível o retorno do apoio do povo aos antigos senhores;

* mas tais casamentos eram mais intoleráveis às mulheres nobres que a própria morte imediata; muitas se suicidaram antes da celebração dos ritos nupciais; e algumas o fizeram durante o próprio casamento, matando antes seus novos maridos; assim, livravam-se do que imaginavam constituir os sofrimentos mais desonrosos para espíritos de nobres virtudes;

* houve realmente uma batalha dos senadores ainda vivos e suas tropas contra Clearco, mas este os venceu e desfilou em triunfo, ante o povo, com os mesmos senadores presos, amarrados e humilhados; na cidade, jogou muitos na prisão, torturou outros e matou diversos; todos os locais, sem exceção, receberam a visita da crueldade do tirano — “e a arrogância acrescentou-se à severidade, a insolência à desumanidade”;

* por causa da boa fortuna que vinha experimentando, Clearco por vezes esquecia ser mero homem e se autoproclamava Filho de Júpiter; quando aparecia em público, uma água dourada, símbolo de sua alta estirpe, era levada adiante do séquito; vestia manto púrpura, andava de borzeguins (como os reis das tragédias) e usava uma coroa de ouro; seu filho, como se viu, dele recebeu o nome de Ceraunos (= Keraunos, o que joga os raios de Zeus), “para zombar dos deuses, não apenas com falsidades, mas também com ímpios nomes”, nas exatas palavras do elegante estilista Justino.


MAS A TIRANIA PROSSEGUIU

A aventura de Quíon de Heracléia, liderando o atentado exitoso contra Clearco, terminou de forma melancólica, como se lê ainda no econômico latim de Justino, que, entre os itens 12 e 18 do Capítulo XVI, em sua Epitome, assinala:

“Dois jovens nobres, Quíon e Leônidas, irritados com a desfaçatez com que Clearco cometia tais ultrajes, e desejando livrar seu país de tal desgraça, conspiraram para matá-lo. Eram discípulos de Platão, o filósofo; queriam mostrar à pátria as virtudes em que se viam diariamente instruídos pelos preceitos do mestre; e colocaram 50 de seus amigos e servos disfarçados, de tocaia, enquanto eles mesmos, passando-se por homens com pendenga mútua a resolver (junto ao magistrado maior), entraram na cidadela do tirano. Uma vez admitidos, pois eram ali bem conhecidos, o tirano Clearco — enquanto ouvia atentamente o que lhe dizia o primeiro a falar — foi morto pelo outro. Mas como seus cúmplices demorassem a chegar para lhes dar apoio, eles mesmos viram-se dominados pelo corpo de guarda do palácio. E aconteceu que, mesmo tendo sido morto o tirano, a pátria (desses heróis) não foi libertada, porque Sátiro [Satyrus], irmão de Clearco, fez-se da mesma forma tirano (no lugar dele). E por muitos anos ainda, em várias mudanças sucessivas, os heraclianos continuaram sob o jugo da tirania”.


NA LITERATURA FANTÁSTICA RUSSA

Interessante também é que, em nossa atualidade, uma escitora russa, Yúliya Latynina [Юлия Латынина], cultora do gênero fantástico, produziu um romance (fantástico em todos os sentidos!) justamente ambientado nos tempos de Clearco e de seu irmão-sucessor Sátiro. O romance intitula-se Клеарх и Гераклея [= Clearco e Heracléia]. Foi originalmente publicado, em 1994, no primeiro número da revista literária russa Дружба народов [= “Amizade dos Povos”]. E pode ser lido — por quem não teme os caracteres cirílicos — no URL www.fantasy-book.ru/lib/al/book/420 ...


UMA DAS CARTAS APÓCRIFAS DE QUÍON

E, agora, para que o leitor tenha uma idéia do teor daquele “romance epistolar” envolvendo Quíon & Clearco, e num absoluto... “furo de reportagem” [ ;-))) ], apresentamos em português (tradução nossa do alemão), uma das cartas atribuídas ao próprio Quíon, a carta 17 — isto é, a missiva “de Quíon a Platão”:

“Dois dias antes da Festa de Dionisos, mandei-te os dois mais confiáveis de meus servos, Pílades e Filócalos. Isto porque, durante as Dionisíacas, decidi tirar a vida do tirano [Clearco], mas de forma a que meu intento não chamasse a atenção de ninguém até se cumprir, depois que de eu obter por muito tempo a confiança de todos, de modo a não me tornar suspeito perante ele [o tirano].

Nesse dia, haveria procissão em honra de Dionisos e o corpo de guarda provavelmente não estaria completo, no local. Se não estivesse, seria decerto necessário que ele [Clearco] passasse pelos fogos, e não hesitaríamos em fazer o que era preciso [assassiná-lo], conforme os ensinamentos que nos dá tua filosofia.

Além do mais, éramos um fornido grupo de conspiradores, tanto pela convicção como pelo número. Eu sabia que, assim fazendo, encontraria a morte. Mas meu único pedido aos deuses era o de nada mais aspirar, uma vez que tivesse eliminado o tirano.

Um alegre hino de graças eu cantaria ao deus Apolo, após assegurada a vitória, eliminando Clearco. Deixaria eu esta vida, sem nada reclamar (porque pressupunha que iria morrer), mas vendo a morte como um prêmio, por haver livrado a Humanidade daquela tirania. E, no sonho, eu trazia uma grande coroa da vitória, feita de folhas de oliveiras silvestres. Após um momento, ainda no sonho, a mulher me mostrava um belo túmulo e dizia:

“Se tua tarefa for bem cumprida, Quíon, encontrarás a paz neste túmulo”.

Após tal sonho, senti-me mais confiante, porque sabia que ia encontrar uma morte honrosa. E também porque não acreditava que algo enganoso pudesse ocorrer, quando minha alma procurava adivinhar o futuro, como é também a tua convicção, Platão.

Minha pressuposição deveria tornar-se real, porque, mesmo antevendo minha morte, eu cria num futuro plenamente feliz e afortunado, da mesma forma que me fosse concedido e permitido viver e envelhecer depois de matar o tirano.

Depois desse ato de heroísmo, seria melhor para mim deixar este mundo do que esperar por um tempo melhor, mais adiante. Se o que eu desejava cumprir tivesse êxito, isto superaria de muito tudo o que pudesse então me acontecer.

Seria isto maior que tudo o que eu pudesse sofrer, tanto para mim como para aqueles a quem eu tivesse feito tal bem. Procurando dizer numa imagem mais elevada, eu lhes daria a liberdade ao preço de minha própria vida.

Porque, em chegando a liberdade, esse seria o maior mérito, o maior ganho, o maior serviço, aos olhos daqueles a quem teria sido feita tal graça. Assim, embora tivesse a morte ante meus olhos, sentia-me então plenamente corajoso.

Portanto, que vivas feliz, Platão, na idade avançada. Eu, por mim, aceito e assumo essas derradeiras coisas que venho de te dizer (nesta carta).

* * *

A carta que acabamos de traduzir, endereçada a Platão e atribuída a Quíon de Heracléia, foi vertida do inglês para o alemão por Christian Gizewski e por ele disponibilizada na Internet, mais exatamente no Portal “Alte Geschichte im WWW” [= História Antiga na Rede Mundial de Computadores], acessível pelo URL http://www.tu-berlin.de/fb1/AGiW/ .

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