Monday, November 30, 2009

CECCO, O ANTI-DANTE ALIGHIERI


[Para ampliar as fotos e sua legenda, clique na ilustração acima]


O genial autor da Divina Comédia viu-se ridicularizado por ótimos sonetos de outro grande vate italiano, Cecco Angiolieri


Evandro da Nóbrega
ESCRITOR, JORNALISTA, EDITOR
[druzz.tjpb@gmail.com]


Este material é também publicado nos seguintes URLs:

- Blog Cultural El Theatro, de Elpídio Navarro [www.eltheatro.com];

- Portal PS on Line, de Paulo Santos [www.psonlinebr.com] e

- Jornal A União On Line [www.auniao.pb.gov.br]


O primeiro filósofo com quem convivi, a partir dos sete anos (depois viriam outros, de Sócrates a Adorno) foi Ninim, vaqueiro tirador de leite das vacas de meu pai.

Sendo isto em Patos (PB), sempre o chamei Ninim das Espinharas.

Era de infinita bondade, conhecia tudo de pastorar gado e de aboios — e, todos os dias, me dizia inesquecíveis frases, no estilo:

— O Mundo é doido e a mãe num sabe.

— Quando a gente morre, tudo isto se acaba.

— Deus é grande e sabe o que faz.

— O Céu só tem uma coisa ruim, as virgens eternas...

Certa vez, Ninim me explicou sua, como direi, teoria dos espíritos-de-porco.

Segundo ele, quando nasce uma pessoa, o "povo do Céu" manda um anjo da guarda para acompanhá-la na Terra.

Nos Infernos, irritado com isso, o Cão-de-Rabo, vulgo Belzebu, destaca um de seus inumeráveis "secretários" (diabos, coisas-ruins, demônios, capirotos ou que nomes tenham) para também acompanhar essa mesma pessoa, atazanando-lhe a vida.

Dante Alighieri (circa 1265–1321) também teve seu cão perseguidor, o diabrete incansável que o tirava do sério: outro poeta, Cecco Angiolieri (circa 1260-1312), uma espécie de "anti-Dante".

Enquanto Dante mostrava-se sério, compenetrado, o blasfemo Cecco levava vida dissoluta: jogo, bebida, mulheres, brigas, sonetos mordazes...

Sua família era rica e nobre, além de haver fornecido um banqueiro ao Papa. Mas Cecco se afastou do pai e da mãe.

Nos poemas, dizia odiar os dois, alegando serem contra a ligação amorosa que mantinha com a desabrida Becchina, musa de sua vida e poesia.

Além disso, o pai não morria — para lhe deixar a fortuna.

Becchina (pronuncia-se bek-kína) é diminutivo de Domenichina (Domenikina, ‘Dominguinha’). Não era nobre, mas filha do coureiro/curtidorBenci.

Pronunciado tchékkô, com ênfase na primeira sílaba, Cecco é um dos diminutivos de Francesco, por si já diminutivo de Franco. Assim, Francesco Angiolieri da Siena adotou o apelido de Cecco Angiolieri (forçando um pouco, Chico dos Anjinhos). Mas nem pense em chamar Francesco Petrarca de Cecco Petrarca!

Constituída por mais de uma centena de sonetos muito bem resolvidos (alguns dos quais apenas atribuídos a ele, sem certeza de autoria), a obra de Cecco viu-se ignorada por muito tempo. Mas, depois, veio sua revalorização (ver abaixo).


“Se eu fosse o fogo”...

O soneto mais famoso de Cecco não é um dos que compôs para ou sobre Dante, mas aquele que diz:

“S'i' fosse foco, ardere' il mondo...”

[= “Se eu fosse o fogo, queimaria o Mundo...”]

Depois do soneto sobre o Florentino (abaixo), vêm, por importância, os que cantam os beijos de Becchina — e outro, hilariante, “dedicado” (naturalmente que contra a vontade da “vítima”...) a um cavaleiro de Siena, Neri.

Este ótimo soneto intitula-se ‘Quando Ner Picciolin voltou da França’ — metido a besta, com sotaque francês e ostentando riqueza.


Arialdo DeBernardi, Arialdo di Brescia

& Humberto Cavalcanti de Mello

Devo o interesse por Cecco ao falecido amigo italiano Arialdo DeBernardi, que me presenteou com livros sobre ele — além de outras autênticas preciosidades da Literatura italiana que me trazia pessoalmente (ou me enviava regularmente), direto de Brescia.

Já o notável historiador paraibano Humberto Cavalcanti de Melo — nosso maior historiador político e grande apreciador da Literatura italiana — também me estimulou a persistir na tradução dos sonetos de Cecco Angiolieri, de quem pouco se fala no Brasil.

Se algum livro sair deste outro esforço que ora empreendo, Humberto será o prefaciador. E o volume será com toda justiça dedicado a Arialdo DeBernardi, a quem sempre chamei de “Arialdo di Brescia” (realmente, um personagem histórico importante), por ser meu falecido amigo também originário, como seu xará mais antigo, dessa importante e mui histórica cidade italiana.

Como foi a briga dos poetas

Dante emitiu comentário maldoso sobre o colega Cecco, vate bem menos famoso que ele. Teria insinuado que Cecco era um begolardo nos palácios dos nobres, onde contava lorotas para goderar refeições deles.

Begolardo, já no italiano da época, significava charlatão, fanfarrão, bufão, contador de vantagens. Cecco não gostou. Tascou um soneto ferino (e bem escrito) em cima de Dante, fazendo-o calar-se — pelo menos no tocante a Cecco, poeta também já respeitado, por ser autor de ótima paródia (séria!) de um soneto de Petrarca.

Dante estava em Verona e Cecco, em Roma, ambos refugiados de problemas políticos em suas cidades natais, Florença e Siena.

Noutros sonetos (vide abaixo), Cecco já citara Dante. De início, eram amigos, mas, depois do dantesco comentário, seguido da ceccoesca resposta em versos, a amizade degringolou.

Na parte inferior desta página, o leitor verá três versões do soneto de Cecco:

1) no original, em arrevesado dialeto itálico-medieval, isto é, dos séculos XII e XIV;

2) na tradução livre, em prosa; e

3) numa tentativa de recriação minha, em português.

Não temam o linguajar italiano do século XIII: os textos em nosso vernáculo explicam o sentido da coisa.

Nem todo cidadão italiano de hoje em dia pode facilmente entender o falar ceccesco antigo, dialetal, abstruso, cheio de apóstrofos e abreviações (por exemplo, s'i' em lugar de si eo = si io = se eu).

O estudioso dos poetas desse recuado tempo tem que conhecer o "espírito da língua" italiana, sua História ortográfica, os dialetos locais etc.

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Mulheres: A Beatriz de Dante

versus a Becchina de Cecco

Um vários sonetos, Cecco ridicularizou a visão de Dante de uma mulher idealizada. À Beatriz poético-dantesca — aquela de "tanto gentile e tanto onesta pare / la Donna mia quand’ella altrui saluta", tímida, pudica, reservada, tremelicante —, opôs Cecco a figura de sua Becchina, robusta, sensual, desabrida, brava, saída do povo.

Se Dante tinha sua Beatrice (da importante família dos Portinari), Cecco dispunha de sua Becchina (que por aqui diríamos "dos Anzóis").

O sienense Cecco chegou a endereçar sonetos mordazes ao poeta florentino, criticando acerbamente isso de "tremer as pernas" ante as moças (ou vice-versa) — e não obteve resposta: Dante evitava contato com seu diabinho pulga-de-cós...

Apesar disto, e ignorado pelos "dantistas" por séculos, Cecco foi, sem dúvida, com seu estilo cortante, o mestre do verso cômico, humorístico, sardônico da Literatura italiana.

Não se quer, evidentemente, emprestar a Cecco importância igual à de Dante, poeta que sem dúvida influiu decisivamente no surgimento de um mundo novo. Tampouco se pode negar a Cecco o valor que também indubitavelmente ele teve e tem.

Nas últimas décadas, numa espécie de resgate de seu papel, a herança dele vem sendo cada vez mais estudada — não apenas na Itália, mas noutros países civilizados. No Brasil, porém, à exceção de pouquíssimos intelectuais, isto não ocorre, porque brazuca só parece gostar mesmo é de balípodo e/ou de correr empós trios-elétricos.

Nas nações avançadas, Cecco Angiolieri já é tema (além das reedições de sua poesia) de novos estudos críticos, pesquisas, música, teatro, romance, concursos...

É também a designação de vitorioso time de futebol italiano. Quem lá pensaria em fundar uma squadra di calcio com o nome de "Dante Alighieri Futebol Clube"?!...

E a crescente fama de Cecco vem servindo, hoje, até para criticar figuras da Política italiana, via charges.

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O SONETO DE CECCO ANGIOLIERI NA VERSÃO ORIGINAL

(DIALETO ITALIANO DO SÉCULO XIV)


S’i’ so bon begolardo

[Di Cecco Angiolieri a Dante Alighieri]


Dante Alighier, s’i’ so bon begolardo,
tu mi tien’ bene la lancia a le reni,
s’eo desno con altrui, e tu vi ceni;
s’eo mordo ‘l grasso, tu ne sugi ‘l lardo.


S’eo cimo ‘l panno, e tu vi freghi ‘l cardo:
s’eo so discorso, e tu poco raffreni;
s’eo gentileggio, e tu misser t’avveni;
s’eo so fatto romano, e tu lombardo.


Sì che, laudato Deo, rimproverare
poco pò l’uno l’altro di noi due:
sventura o poco senno cel fa fare.


E se di questo vòi dicere piùe,
Dante Alighier, i’ t’averò a stancare;
ch’eo so lo pungiglion, e tu se’ ’l bue.


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O SONETO DE CECCO ANGIOLIERI

EM PROSA (VERSÃO LIVRE)

Você, Dante, me chama charlatão, mas não é tão diferente de mim.

Se chupo manteiga à mesa dos poderosos, ao almoço, Você, na ceia, lhes suga o toucinho (a forma lardo também existe em português).

Se sou conviva permanente, Você sempre aparece na hora das refeições.

Se tento virar gentil-homem à força, Você também desta maneira vai-se quase transformando em senhor de grandes posses.

Quando me destaco, Você morre de inveja.

Pelo exílio, eu me tornei romano; e Você, lombardo — igualmente por desterro.

Apesar de que, graças a Deus, nenhum de nós dois pode reprovar algo no outro, pois tudo isto vem da falta de juízo e da desventura ou mau destino.

Então fica assim, Dante Alighieri: se Você persistir em dizer essas coisas sobre mim, juro que haverei de deixá-lo cansado — pois doravante vou conduzi-lo, vez que sou o aguilhão e Você não passa do boi.

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O SONETO DE CECCO ANGIOLIERI EM PORTUGUÊS


Se sou um fanfarrão...

[Recriação de Evandro da Nóbrega]


Se sou um charlatão e não um bardo,
não ficas, Dante, nem um pouco atrás!
Se almoço com uns, o jantar te traz;
se a banha chupo, sugas tu o lardo.


Escovas sempre a roupa, se a guardo;
e, se discurso bem, nunca tens paz;
se banco o rico, és nisto contumaz;
se romano virei, tu és lombardo.


Nenhum de nós dois pode, Deus garante,
recriminar o que o outro fez,
por falta de siso ou fado inconstante.


Se de mim falares outra vez,
vou perseguir-te e te cansar, oh Dante
— pois sou o aguilhão e tu, a rês.


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[Publicado originalmente na última página do

jornal A União, de João Pessoa, Paraíba, edição

do domingo, 29 de novembro de 2009]

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