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O médico e historiador
Guilherme Gomes da Silveira d’Avila Lins, um dos conferencistas do XV Conclave
da FBAM (Federação Brasileira das Academias de Medicina), importante congresso científico
realizado em meados deste mês de maio em João Pessoa, capital da Paraíba.
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O notável médico
paraibano Antônio Carneiro Arnaud, que, desde o dia 15 deste mês de maio de
2014, passou a presidir a Federação Brasileira das Academias de Medicina,
sucedendo neste relevante cargo ao Dr. José Leite Saraiva.
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Frontispício do
programa relativo ao XV Conclave da FBAM (Federação Brasileira das Academias de
Medicina), realizado na Capital paraibana, mais exatamente no Auditório “Professor
Antônio Dias dos Santos”, do Conselho Regional de Medicina da Paraíba, entre os
dias 15 e 17 de maio corrente, com a presença de participantes de todo o país.
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O DR. GUILHERME GOMES
DA SILVEIRA D’AVILA
LINS
MOSTRA COMO ERAM OS
MÉDICOS (E A MEDICINA) NO
BRASIL
DOS PRIMEIROS SÉCULOS
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Evandro da Nóbrega,
escritor,
jornalista, editor
[druzz.judiciario@gmail.com]
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Poucas vezes se terá ouvido — em qualquer Congresso de Medicina realizado em qualquer parte do Brasil e em qualquer
época — conferência tão erudita, fundamentada e esclarecedora quanto a proferida
pelo médico e historiador paraibano Guilherme Gomes da Silveira d’Avila Lins, a
partir das 9h30m da sexta-feira, 16 de maio do corrente ano de 2014, no
Auditório "Professor Antônio Dias dos Santos", do Conselho Regional
de Medicina (Avenida Dom Pedro II, 1.335, Centro de João Pessoa).
A conferência do Dr. Guilherme — sob o instigante título de “Médicos
e Medicina no Brasil dos primeiros séculos” e no estilo agradável, correto e
didático, bem característico das obras do Autor — integrou a programação do XV
Conclave da FBAM (Federação Brasileira de Academias de Medicina), realizado
entre 15 a 17 de maio corrente.
Esta entidade de âmbito nacional, com sigla FBAM, fundada em
1986, foi presidida até o dia 15/05/2014 pelo Dr. José Leite Saraiva, passando,
a partir de então, a ser dirigida por um paraibano — o notável médico
conterrâneo Antônio Carneiro Arnaud, também presidente da Academia Paraibana de
Medicina.
QUEM É GUILHERME
O Dr. Guilherme Gomes da Silveira d’Avila Lins, que
pronunciou a conferência abaixo reproduzida, é autor de vários livros, membro
efetivo do IHGP (Instituto Histórico e Geográfico Paraibano), imortal da APL (Academia Paraibana de
Letras) e Professor Emérito da UFPB (Universidade Federal da Paraíba).
Além dos títulos acima já alinhados, o Dr. Guilherme é também:
- ex-pesquisador de História do Núcleo de Documentação e Informação Histórica Regional da Universidade Federal da Paraíba (NDIHR/UFPB);
- Sócio Correspondente do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB);
- Sócio Correspondente do Instituto Histórico e Geográfico de São Paulo (IHGSP);
- Sócio Correspondente do Instituto Histórico e Geográfico do Paraná (IHGPR);
- Sócio Correspondente do Instituto Geográfico e Histórico da Bahia (IGHB);
- Sócio Correspondente do Instituto Histórico e Geográfico de Alagoas (IHGAL);
- Sócio Correspondente do Instituto Arqueológico Histórico e Geográfico Pernambucano (IAHGP);
- Sócio Correspondente do Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Norte (IHGRN);
- Sócio Correspondente do Instituto Histórico de Campina Grande (IHCG);
- Sócio Honorário do Instituto Histórico e Geográfico do Cariri (IHGC);
- Sócio Efetivo do Instituto Paraibano de Genealogia e Heráldica (IPGH);
- Sócio Efetivo da Sociedade Paraibana de Arqueologia (SPA);
- Membro Efetivo da Academia Paraibana de Medicina (APMED);
- Membro Efetivo da Academia Paraibana de Filosofia (APF);
- Membro Efetivo da Academia de Letras de Areia (ALA);
- etc etc etc.
PROGRAMAÇÃO OFICIAL DO
XV CONCLAVE
A seguir, um resumo da programação — inclusive ou
especialmente em suas partes social e científica — do XV Conclave, ocorrido na
Capital paraibana:
DIA 15/05/2014
(QUINTA-FEIRA)
MANHÃ
LOCAL: Auditório "Professor Antônio
Dias dos Santos" - CRM-PB (Avenida Dom Pedro II, 1.335, Centro)
9h30: Reunião ordinária da Diretoria Executiva da FBAM,
Vice-Presidentes Regionais e Presidentes das Academias Estaduais de Medicina;
TARDE
LOCAL: Assembleia Legislativa do Estado da
Paraíba - Plenário "Deputado José Mariz" (Praça João Pessoa, s/n,
Centro da Capital paraibana)
15h30: Sessão solene da Assembleia Legislativa estadual, para
a entrega do título de Cidadão Paraibano ao Dr. José Leite Saraiva, acadêmico e
presidente da Federação Brasileira de Academias de Medicina (FBAM);
17h30: Coquetel de confraternização
NOITE
LOCAL: Auditório "Professor Antônio
Dias dos Santos" - CRM-PB
20h: Sessão solene de instalação do XV Conclave da FBAM;
20h15: Homenagens, com a entrega de medalhas e diplomas aos
agraciados;
20h30: Discurso de um dos participantes, agradecendo em seu
nome e em nome dos demais homenageados;
20h45: Discurso de encerramento do mandato do até então
Presidente da FBAM, acadêmico José Leite Saraiva;
21h: Posse dos membros da nova Diretoria Executiva da FBAM
(para o biênio 2014-1016);
21h15: Discurso de posse do acadêmico paraibano Antônio
Carneiro Arnaud, na Presidência da FBAM - Federação Brasileira de Academias de
Medicina;
21h30: Encerramento da Sessão Solene, com o convite para o
coquetel de boas-vindas, oferecido aos participantes da sessão e do XV Conclave
da FBAM.
PROGRAMA CIENTÍFICO DO
XV CONCLAVE DA FBAM, EM
JOÃO PESSOA (PB)
DATA: 16/05/2014 (SEXTA-FEIRA)
LOCAL: Auditório "Professor Antônio
Dias dos Santos" - CRM-PB (Avenida Dom Pedro II, 1.335, Centro)
MANHÃ
8h30 às 9h30: Conferência sobre "A subjetividade na
prática médica", pelo conferencista Abram Josek Eksterman, professor da
UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro), sendo a mesa dos trabalhos
presidida pelo acadêmico Alcir Vicente Visela Chácar, da Academia de Medicina
do Estado do Rio de Janeiro (ACAMERJ);
9h30: Conferência sobre "Médicos e Medicina no Brasil
dos primeiros séculos", pelo conferencista Guilherme Gomes da Silveira
d'Avila Lins, da Academia Paraibana de Medicina (APMED);
10h30 às 10h40: coffee
break;
14h40 às 11h40: Conferência sobre "O legado histórico da
Medicina brasileira: mensagem dos mestres para as novas gerações", pela
conferencista Nísia Trindade Lima, pesquisadora do CNPq e Vice-Presidente da
FIOCRUZ para o Gerenciamento Estratégico das Áreas de Ensino, Informação e
Comunicação, sendo presidente da mesa dos trabalhos o acadêmico Gilberto
Madeira Peixoto, vice-presidente da FBAM;
11h45 às 13h45: Almoço;
TARDE
14h às 15 h: Painel sobre "O sistema de Saúde e suas
Políticas no Brasil: avaliação crítica", sob a presidência do acadêmico
José Márcio Soares Leite, da Academia Maranhense de Medicina (AMM) e tendo por
painelistas o Dr. José Agenor Álvares da Silva (da ANVISA/MS) e o Dr. Carlos
Ocké (IPEA - Instituto de Pesquisas Econômicas Aplicadas);
15h às 16h: Debate (Plenária)
16h às 17h: Painel sobre "O Ensino médico no Brasil e
seus desafios: passado, presente e futuro", sob a presidência do acadêmico
Almério Machado, da Academia de Medicina da Bahia (AMBa), tendo por painelistas
o Dr. Gilliatt Falbo (do Instituto de Medicina Infantil de Pernambuco -
IMIPE/PE) e o Dr. Luiz Roberto Londres, da Clínica São Vicente, do Rio de
Janeiro (RJ);
17h às 18h: Debate (Plenária).
PROGRAMA SOCIAL
DIA 16/05/2014
(SEXTA-FEIRA)
MANHÃ
9H30: Início do tour pelos pontos turísticos da cidade de
João Pessoa, com visita ao Mercado de Artesanato da Paraíba para as esposas e
acompanhantes dos acadêmicos;
TARDE: livre
DIA 17/05/2014 (SÁBADO)
Início do passeio náutico pelo rio Paraíba, em catamarã, com
oferta de petiscos e bebidas; encerramento do passeio náutico na Praia do
Jacaré, curtindo-se o pôr do Sol ao som do Bolero,
de Ravel, tocado pelo músico Jurandir do Sax.
18 h: Encerramento do XV Conclave, pelo acadêmico Antônio
Carneiro Arnaud, novo presidente da FBAM;
18h05: Lançamento do segundo volume dos Anais da FBAM;
20h: Jantar de encerramento do XV Conclave da FBAM.
A CONFERÊNCIA DO
DR.
GUILHERME GOMES DA SILVEIRA D’AVILA LINS:
MÉDICOS
E MEDICINA NO
BRASIL
DOS PRIMEIROS SÉCULOS
Guilherme Gomes da
Silveira d’Avila Lins
Ao principiar o tema que me cabe agora quero antes mencionar
ao menos três médicos dentre muitos outros grandes estudiosos da História da
Medicina no Brasil. Esta menção representa uma singela mas justa homenagem que
lhes dedico aqui nominalmente e também é extensiva aos demais não citados.
Em ordem cronológica são eles o pernambucano Leduar
[Figuerôa] de Assis Rocha (1904-1994), o fluminense Lycurgo [de Castro] Santos
Filho (1910-1998) __- a quem chamo de o “Francisco Adolpho de Varnhagen da Medicina Brasileira”, já que se
este último foi o primeiro autor nacional a escrever a mais abrangente História
Geral do Brasil, a seu
turno aquele ilustre médico fluminense foi o primeiro autor nacional a escrever
a mais abrangente História Geral da Medicina
Brasileira ___
e, completando esta lista tríplice, temos o paulista não menos importante
Carlos da Silva Lacaz (1915-2002).
Vale lembrar que tanto Lycurgo Santos Filho quanto Carlos da
Silva Lacaz foram Membros da Academia Nacional de Medicina e, por sua vez,
Leduar de Assis Rocha pertenceu à Academia Brasileira de Medicina Militar, à
Academia Pernambucana de Medicina e à Academia Olindense de Letras. Enfim,
entendo que os pesquisadores da História da Medicina no Brasil,
particularmente os que perscrutam as épocas mais remotas, são estudiosos muito
especiais do nosso passado já que, por assim dizer, navegam por mares ignotos munidos
de imprecisos e vagos portulanos. Se melhor apraz, eles garimpam num particular
“sítio arqueológico” do conhecimento dentre os mais escassos em “gemas” de
interesse no contexto da nossa História Geral. Enfim, no que tange aos
primeiros séculos da Medicina no Brasil, inúmeros são os filões que eventualmente
podem apresentar algo de valor nesse tipo de pesquisa porém, em geral, a coleta
de real utilidade é diminuta em cada veio analisado.
Perceba-se agora que o nosso tema intitulado “Médicos e
Medicina no Brasil dos primeiros
séculos” está em sintonia com um fulcral conceito do saudoso Prof. Dr. Lycurgo
Santos Filho, para quem é incorreto falar em “Medicina Brasileira” dos primeiros
séculos, mas sim em “Medicina no
Brasil” dos primeiros séculos. Ademais é impraticável esmiuçar esse
assunto ao longo do regimental porém exíguo lapso de tempo de apenas uma hora. Noutras
palavras, para cumprir este objetivo seria preciso discorrer durante cerca de
vinte minutos para cobrir cada século da História do Brasil!
Se é assim, deve-se então considerar esse tema exageradamente
abrangente para esta ocasião? Não penso dessa maneira. Entendo que este
cabeçalho é de fato adequado e serve essencialmente para configurar o racional recorte
cronológico a ser abarcado no contexto daquilo que se chama de primeiros séculos
da “Medicina no Brasil” e não
para sinalizar a abrangência geral daquilo que deve ser obrigatoriamente desenvolvido
nesta alocução. Além disso, esse recorte cronológico permite afirmar que, a
rigor, a “Medicina Brasileira” propriamente dita só teve seu marco
inicial a partir de 1808 na Bahia e logo a seguir no Rio de Janeiro, por
ocasião da transmigração da Família Real para estas plagas tropicais.
Só então esta terra veio a perder as limitações sócio-políticas
da condição de Colônia Ultramarina do Reino de Portugal e Algarves para assumir
a condição de Reino Unido de Portugal, Brasil
e Algarves sob a égide do Príncipe Regente D. João, futuro Rei D. João VI, o qual,
desgraçadamente, apesar do seu importante legado nesta terra ficou sendo mais
conhecido aqui como um mero “comedor de frangos”.
Basta recorrer à obra Dom
João VI no Brasil, de
Manuel de Oliveira Lima, para se aquilatar o profícuo legado desse monarca neste
País e, levando em consideração o que mais concerne a nós médicos, registre-se
já, entre seus feitos, a criação da Escola Médico-Cirúrgica no Terreiro de
Jesus, Salvador, Bahia (1808), juntamente com a Escola Anatômica, Cirúrgica e
Médica no Rio de Janeiro e também a Junta Vacínica da Corte (1811).
Volto ainda à questão da periodização da História da
Medicina no Brasil, essencial para a contextualização dos mais diversos
tipos de pesquisas nessa área do conhecimento e também fundamental para a caracterização
dos mais variados momentos da trajetória desse particular ofício ao longo do
tempo. Em História a periodização é a difícil tarefa de estabelecer de maneira
racional os limites das diversas partes ou recortes que compõem o todo. Na
realidade aí lida-se com fronteiras facilmente aparentes ou não e como, em
princípio, toda “fronteira” é “litigiosa” antevê-se a vulnerabilidade
conceitual dos diversos modelos propostos.
No que diz respeito à História da
Medicina no Brasil optei aqui (com poucas diferenças, em geral
terminológicas) por um modelo de periodização inspirado no que foi defendido
por Lycurgo Santos Filho, aliás bastante confiável quanto às respectivas demarcações
de limites:
1. – Fase
inicial ou da medicina dos físicos
(hoje os médicos clínicos) e cirurgiões,
barbeiros, barbeiros-cirurgiões, parteiras, boticários, aprendizes, curiosos, pajés
e curandeiros [desde o inicio do povoamento e colonização desta terra até
os primeiros anos do século XIX, mais precisamente 1808, ano da chegada da
Família Real ao Brasil]
1.1.
– Medicina indígena;
1.2.
– Medicina africana;
1.3.
– Medicina ibérica [exercida por profissionais
habilitados ou não, cristãos-novos e cristãos-velhos, inclusive por colonos
naturais do Brasil];
1.4.
– Medicina jesuítica [exercida por irmãos ou
padres enfermeiros com suas boticas]
1.5.
– Medicina do Brasil holandês;
2. – Fase
secundária ou do processo de
semeadura de uma Medicina Brasileira propriamente dita [a partir de 1808,
desde a fundação das já referidas duas Escolas Médicas, na Bahia e no Rio de
Janeiro, sob a influência cultural portuguesa, espanhola e também francesa até
cerca de meados do Século XIX. Por esse tempo surgiram pioneiros periódicos
médicos no Rio de Janeiro e em Pernambuco como a REVISTA MEDICA FLUMINENSE
(1835-1841) e os ANNAES DA MEDICINA PERNAMBUCANA (1842-1844), de que se fez uma
reimpressão fac-similar (1977) acompanhada de um estudo crítico de Leduar de
Assis Rocha,]
3. – Fase
terciária ou de florescimento
científico progressivo da Medicina Brasileira propriamente dita [em que se
destaca o surgimento da GAZETA MEDICA DA BAHIA (1866-1868), cuja reimpressão
fac-similar (1974) deve-se ao Dr. Edgard de Cerqueira Falcão (1904-1987), destacado
médico e historiador], bem como surgem por esse tempo os estudos da chamada
escola tropicalista baiana (sobre ancilostomíase, filaríase, beribéri, ofidismo
etc.) que repercutiram bastante no Sudeste do País, conferindo suficiente massa
crítica para a concreta configuração de uma fase efetivamente científica da
Medicina Brasileira, a qual se ilustra através de nomes do porte de Adolpho
Lutz (1855-1940), Emilio (Marcondes) Ribas (1862-1925), Vital Brazil (Mineiro
da Campanha) (1865-1950), Oswaldo (Gonçalves) Cruz (1872-1917), (Manuel
Augusto) Pirajá da Silva (1873-1961), médico e historiador, Carlos (Justiniano
Ribeiro) Chagas (1878-1934) e tantos outros]
Aqui nos interessa mais de perto apenas aquela longa fase inicial da medicina no Brasil e a
ela dispensarei minha atenção com toques pontuais referentes às suas
subdivisões sem a preocupação de exaurir o assunto. Mesmo assim, como já ficou
dito, é exatamente nesse período mais remoto da nossa História que enfrentamos as
maiores dificuldades. Portanto, se nesta breve rememoração histórica ou tosca (re)construção
eu não puder utilizar todas as pedras necessárias, espero me valer ao menos de
algumas ilustrativas.
Em primeiro lugar, é preciso registrar aqui um fato marcante.
Incidentalmente, a presença de profissional da medicina na primitiva Terra de
Santa Cruz é, a rigor, tão antiga quanto o seu próprio achamento por
Pedr’Alvares Cabral em 1500, embora isto não signifique o início da prática
médica neste solo tropical. É que naquela esquadra de Cabral viajava uma importante
figura, ou seja, o “bacherel mestre
Johan físico [médico] e
çirurgyano” de El-Rei D. Manuel I de Portugal, o qual foi o autor de um
dos três primeiros documentos sobre a dita arribada no Brasil, ou seja, a
célebre carta de Mestre João.
Aliás, aquela importante figura vem sendo chamada, de Mestre
João Emeneslau mas, infelizmente, o último
nome decorre de leitura paleográfica incorreta numa expressão latina existente no
final de sua carta onde o missivista escreveu em letra do seu tempo: Johannes
artium et medicinae bachalarius [João
bacharel em filosofia (arte) e
medicina] (História da Colonização
Portuguesa do Brasil, v.
II). Ainda a este respeito diga-se que o Mestre João, espanhol a serviço do Rei
de Portugal, parece se superpor a um judeu de nome João Faras, ou originalmente
Juan Faras, que teria migrado do Reino de Espanha para Portugal a fim de
escapar da abominável inquisição espanhola.
O assinalamento desse judeu (o físico e cirurgião Mestre João)
no Brasil de 1500 serve já para prenunciar a significativa afluência de muitos
outros judeus e cristãos-novos, oriundos inicialmente da Península Ibérica, os
quais vieram a aportar mais tarde nesta colônia (também fugindo da Inquisição, de
“livre vontade” sem alternativa ou sob degredo) onde passaram a praticar a medicina
que conheciam, fossem ou não habilitados para tanto. Aliás, cresceu bastante a
afluência de judeus e cristãos-novos, e dentre eles os médicos, durante o
segundo período holandês no Brasil (1630-1654).
No desenrolar deste tópico é preciso ter em mente que aquelas
cinco subdivisões da fase inicial da
medicina no Brasil (Medicina indígena, Medicina africana, Medicina ibérica,
Medicina jesuítica e Medicina do Brasil holandês) têm uma conotação meramente distintiva
quanto à sua natureza básica e não um caráter de gradação evolutiva ao longo da
história. Dessa maneira, num mesmo determinado momentum, pode-se bem perceber a coexistência daquelas cinco
modalidades de prática médica nesta terra (fase
inicial) e isto se ilustra melhor ao longo do período holandês no Nordeste
(1630 a 1654). Por esse tempo, além daquela coexistência, houve inclusive a
assimilação de certos conceitos terapêuticos próprios de uma das cinco
modalidades iniciais de atuação médica por outra até menos evoluída. Como exemplo
temos um fato ocorrido em 1638.
Como se sabe, em Pernambuco João Maurício, Conde de
Nassau-Siegen, tinha ao seu dispor o que havia de melhor na Medicina europeia
do seu tempo todavia recebeu no Recife a recomendação para ir à Paraíba (e a
aceitou) a fim de beber a água de uma já então famosa Bica dos Milagres, cujo nome provinha de suas extraordinárias propriedades
terapêuticas para o mal das pedras,
ou seja, a nefrolitíase, de que ele era portador. Pois bem, esse governante do
Brasil holandês demorou-se aqui cerca de um mês com esse propósito. Parece que
obteve melhora significativa da cólica nefrética já que não se sabe de novos
queixumes seus nessa época.
Por outro lado, irônica e infelizmente, quem piorou, com o
passar do tempo, foi a sorte daquela fonte de água milagrosa. Hoje a Bica dos Milagres é desconhecida da
imensa maioria da população desta terra, encontra-se entupida e descaracterizada,
além de abandonada pelas autoridades (que há muito anos prometem resgatá-la do
limbo a que foi injustamente condenada), em que pese o fato de ter saciado a sede
da população desta cidade durante os séculos iniciais da nossa história local
com seus 429 anos de idade. A propósito, a importância daquela fonte já era
assinalada no ano de 1599 (Livro Tombo do Mosteyro
de Sam Bento da Parahyba).
Retomando o fio da meada, o gentio da costa do Brasil era
originalmente robusto e saudável, apresentando poucas doenças naturais.
Costumava ser longevo, podendo atingir até 120 anos se a morte não o alcançasse
antes nas muitas guerras que mantinha com outras facções indígenas ou contra o
invasor europeu que queria modificar seus costumes. Em última análise, foi o
elemento branco colonizador, dito civilizado, bem como o escravo africano por
este trazido para cá à força que, juntos, vieram a disseminar e formular a
nosografia brasileira dos primeiros séculos abrangendo doença infecciosas,
dermatológicas, gastroenterológicas, respiratórias, urinárias, ginecológicas,
osteoarticulares etc.
O fato é que, ao longo dos primeiros anos e até depois das
três primeiras décadas do achamento do Brasil, não faz sentido falar em
exercício da medicina nesta terra. Não me refiro aqui aos ritos indígenas
praticados com o objetivo de curar os enfermos, os quais continuam vigentes até
hoje entre seus pajés, misto de sacerdotes e médicos.
Pois bem, por ocasião das primeiras expedições do Século XVI
com a finalidade precípua de explorar esta porção do Novo Mundo ou de policiar
as costas do litoral brasileiro, não há notícia concreta de que profissionais
da Arte Médica tivessem vindo nelas embarcados. Aliás, é até admissível que a
expedição colonizadora de Martim Afonso de Sousa (1530-1533) tivesse trazido colonos
desse ofício mas também não há disso informação segura.
Assim, os primeiros europeus praticantes da Arte de Curar,
geralmente cristãos-novos oriundos da Península Ibérica, começaram a surgir aos
poucos com a criação das Capitanias Hereditárias (1534). Vamos passá-los em
revista rapidamente:
a) acerca da Capitania de São Vicente, segundo Affonso
d’Escragnole Taunay, “Em todo o Século
XVI não se constata a existência de clínico algum em São Paulo. Em 1597 instalava-se o primeiro serviço médico
sanitário com a nomeação do barbeiro Antonio Roiz [Rodrigues] para juiz do ofício dos físicos. Era homem
experimentado e examinado e não daqueles empíricos que na vida curavam feridas
e faziam sangrias por toda a terra” (Historia da
Cidade de São Paulo);
b) na Capitania do Rio de Janeiro, segundo notícia
oriunda do Colégio Brasileiro de Genealogia, o primeiro médico foi Francisco da
Fonseca Diniz, nascido em 1616 e neto de Aleixo Manuel, o velho, um dos famosos
povoadores da cidade de São Sebastião. Sabe-se ainda que ao tempo da fundação
dessa cidade (1565) alguns barbeiros foram enviados para lá. Ademais, de acordo
com José Gonçalves Salvador, nessa mesma cidade havia o médico cristão-novo
Belchior Babington exercendo sua profissão em torno de 1627. Uma década mais
tarde achava-se também aí o médico cristão-novo Gaspar Gomes da Costa e o
cirurgião cristão-novo Manuel Jorge Feio (Os
Cristãos-Novos. Povoamento e conquista do solo brasileiro – 1530-1680). Acrescente-se ainda que em notícia
documental divulgada na Revista do Instituto Histórico e Geográfico de São
Paulo pelo ilustre médico e historiador José Pedro Leite Cordeiro, verifica-se
que em 30 de julho de 1637 o licenciado Francisco Marques Coelho havia
embarcado para o Rio de Janeiro como médico (Alguns
Documentos Sôbre Médicos e Medicina do Brasil Seiscentista);
c) na Capitania de Porto Seguro, por esse tempo, não
encontrei ninguém dedicado à Arte de Curar. A partir de agora, com o mesmo
objetivo, valho-me de outras fontes antigas desde 1591 até 1595), referentes à
malsinada Primeira Visitação do Santo Ofício às
partes do Brasil (Confissões
da Bahia [1591-92] - Denunciações da Bahia [1592-1593] - Denunciações de
Pernambuco {1593-1595} [incluindo Itamaracá e Paraíba] – Confissões de
Pernambuco {1594-1595} [incluindo Itamaracá e Paraíba]). Pode-se identificar aí
diversas pessoas que se ocuparam com a prática médica nos locais onde moraram;
d) na Capitania do Espírito Santo temos Pero Anriques,
cristão-novo, físico e cirurgião;
e) na Capitania da Bahia, registro João Vaz Serrão, cristão-novo,
que era cirurgião;
f) na Capitania de Pernambuco cite-se Gaspar
Rodrigues, cristão-novo, boticário, Luís Antunes também boticário, Gaspar Fernandes,
cristão-novo, barbeiro, Gaspar Rodrigues Covas, cristão-novo, cirurgião,
Antonio Trevisan, cristão-novo, boticário, além de outro cristão-novo não
identificado, casado com Maria Alvares, que também era boticário;
g) na Capitania de Itamaracá cito Agostinho Lourenço,
cristão-velho, barbeiro, assim como Maria Fernandes, cristã-velha mameluca, parteira,
Julião de Freitas, cristão-velho mameluco, cirurgião e Fernão Soeiro, cristão-novo,
cirurgião (já falecido em 1594);
h) na Capitania da Paraíba, pertencente à Coroa, não
se encontra ninguém naquelas fontes porém o saudoso Prof. Dr. Heronides [Alves]
Coelho Filho, médico e historiador pernambucano que muito cedo se tornou paraibano,
entendia que era médico o famoso cristão-novo Ambrósio Fernandes Brandão, autor
dos Diálogos
das Grandezas do Brasil,
obra monumental das nossas letras históricas (Medicina,
doenças e médicos nos primeiros anos da Paraíba).
O primeiro capítulo dessa obra estava sendo
redigido em 1618 e diga-se aqui mais uma vez que, diferente da opinião que
certo autor local mal informado tem divulgado, essa data de 1618 nada tem a ver
com a publicação original desse texto, ocorrida somente no Século XIX. Como já
afirmei noutro local, Ambrósio Fernandes Brandão, nascido em Portugal, foi homem
apatacado; mantinha residência em Lisboa e possuiu inicialmente um engenho de
açúcar em Pernambuco (São Lourenço da Muribara, hoje São Lourenço da Mata),
tendo depois levantado mais três engenhos na Paraíba onde veio a se estabelecer
no início da colonização desta terra (Levantamento
das publicações dos Diálogos das Grandezas do Brasil
com algumas notas sobre o seu mais do que provável autor). Enfim, se ele não foi de fato um
médico, sem dúvida foi um naturalista de saber enciclopédico.
O fato é que a predominância de judeus e cristãos-novos entre
os profissionais da Arte Médica no Brasil se estendeu desde os primeiros tempos
da nossa colonização até meados do Século XVIII e sua maior afluência parece
ter ocorrido durante o domínio holandês em Pernambuco (1630-1654),
particularmente entre 1635 e 1638, tema sobre o qual me ocuparei mais adiante
de forma superficial.
Do ponto de vista institucional foi somente a partir da criação
do Governo Geral no Brasil que chegou com Thomé de Sousa (1549) o primeiro
profissional habilitado em Medicina, o cristão-novo Jorge de Valadares, nomeado
pelo Rei D. João III com o título de Físico-Mor da Cidade do Salvador e
vencimento anual de 24 mil reis acrescidos de 40 reis mensais para seu sustento.
Dessa maneira, sua função fundamental era administrativa (regulamentação da atividade
médica sob uma fiscalização virtualmente impraticável na época) embora ele não
estivesse impedido de exercer o seu ofício.
Ao que parece, os moradores comuns dessa cidade, entretanto,
não deviam constituir a população-alvo da prática médica do Físico-Mor, mas sim
a elite e a nobreza da terra. O povo de Salvador em geral e também e das demais
urbes da colônia recorria geralmente aos outros físicos e cirurgiões habilitados,
quando dispunham. Menos raros então eram os práticos desse ofício, os barbeiros-cirurgiões,
os boticários e os barbeiros que, além de aparar cabelo e barba escarificavam a
pele, lancetavam abscessos, extraíam dentes, faziam curativos, tratavam
mordeduras de cobras, aplicavam sanguessugas, ventosas e clisteres, possuindo ou
não a legalizadora “carta de examinação” conferida por profissional habilitado.
Importante é dizer que por esse tempo a grande carência de moeda de contado
obrigava o paciente a pagar em produtos da terra o preço previamente ajustado
com seu facultativo.
Consta que naquele tempo era incomum enriquecer com esse tipo
de atividade. Enfim, o cristão-novo Jorge de Valadares exerceu o cargo de Físico-Mor
em Salvador até o ano de 1553. Com o Governador Thomé de Sousa (1549) veio
também o primeiro boticário nomeado oficialmente para este ofício no Brasil, ou
seja, o cristão-novo Diogo de Castro que auferia o salário anual de 15 mil reis.
Igualmente com Thomé de Sousa chegaram os primeiros jesuítas (padres e irmãos
noviços) a Salvador liderados pelo padre Manoel da Nóbrega, S. J., os quais
começaram não somente sua valiosa obra missionária nesta colônia como também a
chamada medicina jesuítica, em geral de melhor qualidade que a já aí exercida,
a qual era praticada junto à população indígena e aos colonos da terra, pelos
irmãos enfermeiros (alguns cirurgiões) e pelos irmãos boticários.
O Padre Serafim [Soares] Leite, S. J., afirma que: “Os três primeiros enfermeiros do Brasil
foram o Irmão (depois Padre) João Gonçalves na Baía, e o Ir. (depois Padre)
Gregório Serrão em S. Paulo de Piratininga, a quem sucedeu o Ir. (depois Padre)
José de Anchieta” (Artes e Ofícios dos Jesuítas
no Brasil - 1549-1760. Nessa
sua obra
o autor relaciona mais
de 150 religiosos enfermeiros, cirurgiões e boticários que praticaram a Arte de
Curar ao longo daquele período (1549-1760). Esses
religiosos levavam para
as aldeias indígenas o que se pode chamar botica de campanha. Já nos
Colégios da Companhia de Jesus havia enfermarias e boticas para a assistência à
população local.
Sabe-se, por exemplo, que em 1760 o Colégio do Pará, ao ser
fechado, possuía em sua botica 20 obras de Medicina e mais de 400 remédios nas
estantes, além do aparato técnico para sua confecção. Por sua vez a Capitania
da Paraíba durante muito tempo ficou privada dessa desse tipo de assistência à
saúde por conta da expulsão dos inacianos aí ocorrida em 1593 até o ano de 1683.
Nesse ano a Companhia de Jesus retornou para empreender um estabelecimento
pleno na terra e seus padres, além do missionamento de algumas poucas aldeias
indígenas, trabalharam na lenta formação do efêmero Colégio de São Gonçalo na
Paraíba, fechado em 06 de fevereiro de 1760 com a expulsão dos Jesuítas de toda
a colônia. Por outro lado, segundo a mesma fonte jesuítica, a partir do final
do Século XVII houve nos Colégios dos Jesuítas também médicos externos (não
religiosos) que prestavam atendimento médico, em caráter permanente, sob
remuneração, tais como o Dr. Júlio Mário, francês, falecido no Recife em 1685,
o Dr. Porfírio Poflitz, médico do Colégio do Pará em 1692, o Dr. Manuel Mendes
Monforte, português, cristão-novo, que chegou à Bahia em 1698 e atuou aí até 1721, além do Dr. Manuel Nunes
Leal que também atuou depois no Colégio da Bahia.
Continuando o Governo Geral, com a esquadra do segundo
governante D. Duarte da Costa, chegou outro cristão-novo, o licenciado Jorge
Fernandes, nomeado Físico-Mor em Salvador (1553) com um ordenado anual
de 60 mil reis. Vinha ainda um cirurgião chamado Mestre Pedro. Relato agora um fato
interessante ocorrido por esse tempo. Em agosto de 1557 o padre Manoel da
Nóbrega, S. J., andava bastante doente, ocasião em que escreveu da Bahia uma
carta (hoje impressa mais de uma vez) ao padre Miguel de Torres, S. J., em
Lisboa, onde dizia que o Físico-Mor e cristão-novo Jorge de Valadares o estava
tratando. Termina essa carta dizendo: “...
porque a mim devem-me já de ter por morto, porque ao presente fiquo deitando
muito sangue pella boca. O medico de quá [ou seja, o cristão-novo Jorge de Valadares] hora diz que hé vea [veia]
quebrada, ora que hé do peito, hora que
pode ser da cabeça: seja donde for, eu o que mais sinto hé ver a febre ir-me
gastando pouco a pouco.” (Cartas dos Primeiros
Jesuítas do Brasil, v.
II). Esta carta também mereceu destaque numa obra exemplar de Bella Herson (Cristãos-novos
e seus descendentes na medicina brasileira).
Com o terceiro Governador Geral, Mem de Sá, veio em 1557 o
Mestre Afonso Mendes, cristão-novo, com o título de Cirurgião-Mor em
Salvador nas partes do Brasil, recebendo o ordenado anual de 18 mil reis, valor
que depois foi acrescido de mais 6 mil reis anuais para também dirigir a Botica
Real em Salvador. Tempos depois, já em 1591, veio à cidade do Salvador outro
cristão-novo para servir como Cirurgião-Mor no governo de D. Francisco
de Sousa. Recebia para tanto o salário de 16 mil reis.
Enfim, os cargos de Físico-Mor e de Cirurgião-Mor
vieram a ser extintos em 1782, dando lugar à Real Junta do Protomedicato
que centralizava as respectivas competências através de seus delegados com
autoridade inclusive nos domínios ultramarinos. Esta nova configuração perdurou
até 1808 quando foi extinta, ressurgindo um regulamento para as atividades do Físico-Mor
e do Cirurgião-Mor, cuja jurisdição abrangia o Reino de Portugal e
Algarves por meio dos seus delegados.
Trago agora uma curiosidade digna de registro no que toca à
Medicina indígena. Esta notícia foi veiculada no Orbe
Serafico Novo Brasilico
(que em edição definitiva passou a se chamar Novo
Orbe Serafico Brasilico)
por frei Antonio de Santa Maria Jaboatão, O.F.M. Ele a encontrou num antigo
manuscrito franciscano. Acha-se aí uma peculiar crendice terapêutica que ainda
não vi ressaltada. Diz respeito aos índios potiguara, antropófagos e inimigos
dos tabajara, dos caeté e dos tapuia do interior.
O fato teria se passado numa determinada aldeia potiguara em
que um padre da Companhia de Jesus “achou
a huma India, já muy velha, e no ultimo da vida. Applicou-lhe primeiro toda a
medicina da alma, e vendo-a já bem disposta espiritualmente, e a grande
fraqueza em que estava, e o sumo fastio, que mostrava, querendo-lhe applicar
também algum alento para o corpo, lhe disse: (fallando-lhe ao modo da terra)
minha Avó, (assim chamaõ ás que são muy velhas) se eu vos dera agora hum bocado
de açúcar, ou algum outro conforto lá das nossas partes do mar, não o comerias?
Respondeu-lhe a velha, e a que já julgava o Padre bem disposta para morrer: Ay
meu Neto, nenhuma cousa da vida desejo, tudo me aborrece já, só uma cousa me
poderia tirar agora este fastio. Se eu tivera agora huma mãozinha [certamente
moqueada] de um Rapaz Tapuya, de pouca
idade, e tenrinha, e lhe chupara aquelles ossinhos, então me parece tomára [eu] algum alento {Eis o resultado
terapêutico deste curioso remédio]: porèm
eu, coitada de mim, já não tenho quem me vá frechar hum destes!”.
Dessa maneira o significado da antropofagia, tão própria dos nossos
índios, ia além do valor ritualístico de vingança e de incorporação das
qualidades do inimigo a ser morto, tais como bravura e coragem; possuía
adicionalmente propriedades terapêuticas indicadas em pacientes geriátricos e
inapetentes.
Não se pode esquecer aqui da assistência à saúde prestada
desde meados do Século XVI, embora ainda de forma precária, nos hospitais das beneméritas
instituições pias conhecidas como Casas da Santa Misericórdia ou Santas
Casas que também contavam com uma igreja. Aliás, as Capitanias de Pernambuco
e de São Vicente ainda hoje disputam a primazia da fundação da primeira
Instituição desse gênero no Brasil, às quais se seguiu a de Salvador.
Na Paraíba a Casa da Santa Misericórdia foi fundada
por Duarte Gomes da Silveira, natural de Olinda, um dos heróis da conquista desta
terra e um de seus primeiros colonos. Doou a quantia de 6 contos de reis para a
edificação dessa instituição pia principiada em torno de 1590, onde reservou para
si uma Capela sob a invocação do Salvador do Mundo, levantada na parede lateral
da Igreja. Na sua cripta deveriam ser enterrados, não somente ele, mas também
sua família e descendentes. Diferente do que se afirma por aí, essa obra já
estava concluída ou virtualmente acabada em 08 de janeiro de 1595, data
em que da Igreja da Misericórdia da Paraíba saiu a solene procissão de
instalação da Primeira Visitação do Santo Ofício na Paraíba, tendo a frente o
Visitador Heitor Furtado de Mendoça.
Mais tarde, no raiar de 1630 Pernambuco sofreu a invasão
neerlandesa orquestrada pela Companhia das Índias Ocidentais, a qual se
expandiu para quase todo o Nordeste, domínio este que perdurou até 1654. A
região ocupada passou a receber grande afluência de judeus e cristãos-novos
(dentre os quais, profissionais da saúde), provenientes das Províncias Unidas
dos Países Baixos. Essa afluência mais se adensou entre 1635 e 1638. É que a
partir de 1635 os flamengos haviam conseguido ultimar o domínio sobre as terras
por eles invadidas mediante a conquista da Paraíba (depois de dois fracassos
consecutivos), a que se seguiu em Pernambuco a rendição do Arraial (Velho) do
Bom Jesus e do Forte de Nazaré, derradeiros focos de resistência ao invasor.
A partir daí, de acordo com José Antonio Gonsalves de Mello
[Neto], os judeus e cristãos-novos migrados para as Províncias Unidas (oriundos
de várias nações inclusive de Portugal) se sentiram estimulados a tentar uma
vida nova no Novo Mundo. Assim eles solicitaram licença (além de algum tipo de
benefício como passagem gratuita e comida durante a viagem) a fim de residirem
no Brasil holandês. Dentre eles haviam barbeiros, barbeiros-cirurgiões e
médicos. Aliás, um deles, Jacob Moreno, acompanhado da esposa, pediu licença e
passagem a fim de poderem se estabelecer na Paraíba, onde ele pretendia abrir
uma tenda de cirurgia. Outro físico e boticário judeu que veio para Pernambuco se
assinava Dr. Abraão Mercado, o mais notável de todos, que vendia medicamentos
ao governo holandês.
Também médico e boticário no Recife foi o Dr. Musaphia que em
1650 vendeu medicamentos ao governo holandês no valor de 400 florins. Por volta
de 1641 o judeu Dr. Nunes exerceu no Recife o ofício de cirurgião. Por sua vez o judeu Luís Mendes também exerceu
aí o ofício de cirurgião (Gente da Nação.
Cristãos-novos e judeus em Pernambuco).
Apenas como curiosidade, o primeiro governante neerlandês (Diretor) da
Capitania da Paraíba, Dr. Servaes Carpentier, era formado em medicina
entretanto não há notícia de que tenha praticado esta profissão no Brasil. De
todo modo, um irmão seu, Gerard Carpentier, foi boticário engajado nas tropas
de ocupação desta terra. É importante registrar que durante o período
neerlandês o Recife chegou a possuir dois hospitais que estavam sempre lotados.
No ano de 1637 chegou o Conde de Nassau-Siegen para
governar no Brasil o território até então já conquistado e o que ainda viesse a
conquistar. Era um homem preparado e culto. Aqui estabeleceu um governo
politicamente esclarecido além de tolerante, até certo ponto, para com a liberdade
de consciência, principalmente em relação aos judeus. Dentre seus acompanhantes
de apoio pessoal destacam-se dois nomes ligados à medicina e à história natural.
Um deles era o seu físico, Willem Pies (Guilherme Piso), nascido em
Leiden, e o outro o naturalista Georg Marcgraf (George Marcgrave),
natural de Liebstadt.
Numa época de virtual obscurantismo quanto às
ciências médicas e quanto à história natural desta terra, esses dois homens
trouxeram luzes fundamentais com suas pesquisas nessas áreas. Desgraçadamente, o
mundo luso-brasileiro do seu tempo nunca tomou conhecimento da grandiosidade do
trabalho que realizaram porque aos olhos de Portugal eram participantes de um
projeto invasor além de membros da tida como herética religião cristã reformada.
A obra que ambos produziram, independente de sua importância, jamais receberia
naquele tempo a chancela das três licenças da Coroa Portuguesa para poder ser
impressa.
Enfim, essa obra monumental para a sua época foi
publicada em Leiden no ano de 1648 e recebeu o título latino de Historia
Naturalis Brasilia e está dividida
em duas partes. A primeira parte, da autoria de Willem Pies, é chamada de De
Medicina Brasiliensi, e a segunda
parte, denominada Historiae Rerum Naturalium Brasiliae. Na primeira parte o autor descreve diversas
condições mórbidas encontradas no Brasil como os catarros, os males dos olhos,
o estupor dos membros, a bouba, a opilação, o tétano, a hidropisia, o prolapso, os fluxos do ventre,
o tenesmo, o cólera, as disenterias, a
úlcera e inflamação do ânus (doença
do bicho ou bicho del culo [maculo], as lombrigas,
a lues, as feridas e as úlceras, os
furúnculos e a impigem. Dedica-se também aos medicamentos da terra.
Dando sequência a esse assunto, menciono agora
apenas algumas obras adicionais de natureza médica que surgiram a partir do
século XVII. Aliás, nesta relação não faltam autores cristãos-novos, cujas obras
__ quando acessíveis nestas plagas pois a imprensa
no Brasil só começou em 1808 __ serviam de fonte de consulta para
físicos e cirurgiões locais dentre os mais interessados. Cumpre, pois,
mencionar inicialmente o português médico cristão-novo chamado Simão
Pinheiro Morão que morou em Pernambuco onde exerceu sua profissão e aí veio
a falecer. Utilizando o anagrama de Romão
Mosia Reinhipo ele publicou em Lisboa (1683) o Trattado
unico das bexigas, e sarampo. Ao que
parece esta é foi primeira obra da literatura médica brasileira em língua
portuguesa.
Antes dele, outro médico português chamado Aleixo
de Abreu, físico da Câmara Real de Espanha, esteve em Angola onde estudou o
escorbuto (conhecido ainda como Mal de Loanda e assim Camões o havia nominado).
Enfim, em 1623 publicou em Portugal porém em língua espanhola o Tratado
de las siete enfermedades ... Assinalo a
seguir o médico cristão-novo chamado João Ferreira da Rosa que publicou
em Lisboa, no ano de 1694 o Tratado único da
constituiçam pestilencial de Pernambuco,
dedicado unicamente ao estudo da febre
amarela.
Alguns anos mais tarde, em 1707, surgia em
Lisboa uma obra dedicada exclusivamente ao maculo,
denominada Noticias do que he o achaque do Bicho da autoria de Miguel Dias Pimenta, que
era familiar do Santo Ofício e residente em Pernambuco, como informa na
respectiva página de rosto. Registro agora José Rodrigues de Abreu,
outro familiar do Santo Ofício e médico del Rei, além de Cavaleiro professo da
Ordem de Cristo (o que vale dizer cristão-velho), o qual publicou em 1733, na cidade de Lisboa, a obra
intitulada Historiologia Medica...
Um cirurgião lusitano que residiu na Bahia,
chamado João Cardoso de Miranda, publicou em Lisboa no ano de 1741 uma
obra intitulada Relaçaõ Cirurgica, e Medica (reeditada lá mesmo em 1747) onde versava sobre
um novo método para tratar o escorbuto
ou Mal de Loanda. Há ainda uma obra de
natureza pedagógica publicada em Paris, cujo autor, Antonio Nunes Ribeiro
Sanches, foi um cristão-novo português, médico, historiador, filósofo,
pedagogo e enciclopedista. Trata-se do Methodo para
Aprender e Estudar a Medicina (1761).
Concluo esta sequência com a obra de José Jacob Plenck, traduzida para o
português pelo médico lusitano e cristão-novo Manoel Joaquim Henriques de
Paiva sob o título de Doutrina das
Enfermidades Venereas ..., dada à luz em Lisboa no ano de 1786.
Por outro lado, durante boa parte do Século
XVIII recrudesceu no Brasil a perseguição aos cristãos-novos por ordem da
Inquisição de Portugal. Por esse tempo entraram em cena os Familiares do Santo
Ofício desta terra a quem, na condição de denunciantes, cabia um terço de todo
o patrimônio dos réus (fossem eles culpados ou não). Muitos cristãos-novos
foram presos e encaminhados para Lisboa. Segundo Arnold Wiznitzer o primeiro
marrano a ser enviado preso para Lisboa foi justamente um médico residente na
Bahia chamado Francisco Nunes de Miranda que ouviu sua sentença em 19 de
fevereiro de 1701.
Além destes, nos anos seguintes houve vários
outros médicos e boticários em igual situação (Os
Judeus no Brasil Colonial). Numa outra
amostragem do mesmo período, analisada por Anita Novinsky, dentre os
cristãos-novos alcançados pela Inquisição no Brasil houve sete médicos e um
boticário que exerciam sua profissão na colônia, os quais vieram a ser presos e
enviados a Lisboa onde mais tarde cumpriram suas sentenças penitenciais em
autos de fé.
Dentre eles cinco médicos eram do Rio de Janeiro (Francisco de
Siqueira Machado, João Nunes Vizeu, Theodoro Pereira da Costa, Diogo Correa do
Valle e Diogo Cardoso Coutinho; outro era de Paracatu (Antonio Ribeiro Sanches)
e o último, Manuel Mendes Monforte, residia na Bahia (citado há pouco como um
dos médicos contratados pelo Colégio dos Jesuítas); Já o cristão-novo boticário
era de Paracatu (João Henriques) (Inquisição.
Inventários de bens confiscados a cristãos-novos). A estes acrescente-se o médico João Tomás de Castro, natural do Rio
de Janeiro, que aos 31 anos de idade foi queimado vivo em Lisboa pela
Inquisição, como informa Francisco Adolpho de Varnhagen (Historia
Geral do Brasil).
Ainda em tempo, não poderia deixar de assinalar
aqui que, como nos informa o médico e historiador Dr. Guilherme [Chambley]
Studart (Barão de Studart), por volta do início da segunda metade do Século
XVIII, chegou à Capitania do Ceará o médico italiano Dr. José Balthazar
Augeri, nascido em Piemonte, onde se casou e fixou residência dando origem à
famosa família de nome Saboia, apelido patronímico por ele adotado (Datas
e Factos para a Historia do Ceará,
v. I). Aliás, dentre seus três filhos, um foi o cirurgião licenciado Luiz
Carlos de Saboia e outro foi o boticário com carta de aprovação Vicente Maria
Carlos de Saboia (Idem; Genalogy.com).
Caminhando já para o final, ao longo da segunda
metade do Século XVIII, mais precisamente a partir de 1772, ocorreu em Portugal
a benfazeja Reforma dos Estatutos da Universidade de Coimbra promovida pelo
Marquês de Pombal (daí Reforma Pombalina) que proporcionou um real ganho de
qualidade no ensino superior de Portugal, já então muito defasado em relação ao
restante da Europa. Essa mudança curricular e pedagógica vinha sendo propugnada
por alguns portugueses iluminados que residiam fora da Pátria, entre eles o
médico e cristão-novo Antonio Nunes Ribeiro Sanches, há pouco citado. Por esse
tempo, diante da proibição de se criar cursos superiores no Brasil, alguns poucos
estudantes ricos desta terra já iam em busca deles noutros países da Europa
como Espanha (Salamanca), França (Montpellier) e Reino Unido (Edinburgh).
Principalmente a partir da Reforma da Universidade de Coimbra (1772) foi
crescendo o número de estudantes brasileiros nesta Universidade, interessando
mais aqui os estudantes de medicina.
Vejamos primeiramente os brasileiros estudantes
de medicina em Montpellier no Século XVIII. De acordo com João Vinícius Salgado
et al., houve 15 estudantes de
medicina em Montpellier entre 1767 e 1791. Sete deles eram oriundos da cidade
do Rio de Janeiro (Jacinto Silva Quintão [1778], José da Maia Barbalho [1787],
José Camara R. Gusmão [1790], Vicente Gomes da Silva [1791], Manuel Souza
Ferraz [1791], José Vidigal Medeiros [1791] e José Joaquim Carvalho [1792]).
Quatro outros provinham das Minas Gerais, respectivamente de Vila Rica,
Mariana, Juiz de Fora e São Gonçalo do Sapucaí (Joaquim Seixas Brandão [1767],
Ignacio Ferreira Camara [1785], Domingos Barbosa Lage [1786] e Faustino José
Azevedo [1793]).
Um outro vinha de Salvador (Joaquim Souza
Ribeiro [1787]). Quanto a Eleuterio José Delfim, aparentemente matriculado em
1786, não se sabe onde nasceu. Restam ainda dois irmãos tidos como
pernambucanos porém nascidos na Paraíba (Francisco Arruda da Camara, homônimo
do pai [1790] e Manuel Arruda da Camara [1791]) (Brasileiros
Estudantes de Medicina em Montpellier no Século XVIII). Permitam-se tecer aqui algumas poucas
palavras acerca destes dois paraibanos.
O primeiro deles teve menos importância,
inclusive para o seu próprio irmão, ao que parece. Sua tese de doutorado
defendida em 1790 recebeu o título de Positiones
non-nullae circa variolarum inoculationem.
Não tenho notícia de sua atuação como médico mas sim como político e proprietário
rural. Por sua vez, o ilustre doutor em medicina Manuel Arruda da Camara (muito
mais um naturalista) foi inicialmente carmelita calçado sob o nome de frei Manuel
do Coração de Jesus Arruda, O.C.C., na época em que estudava na Universidade de
Coimbra, matriculado no curso de filosofia (1786) e também no curso de matemática
(1787) (Rodolpho Garcia - Estudantes Brasileiros
na Universidade de Coimbra – 1772-1872).
Sua vida e obra foram estudadas, mais do que ninguém, por José Antonio
Gonsalves de Mello [Neto]. Em quase todos os passos acompanho aqui este autor.
Não há dúvida de que seu nome correto era Manuel
Arruda da Camara (e não Manuel de Arruda Camara). O fato é que a seguir o vemos
sem a identificação religiosa e matriculado no curso de medicina da Universidade
de Montpellier. Defendeu a tese Disquisitiones
quaedam physiologico-chemicae, de influentia oxigenii in aeconomia animali,
precipue in calore, et colore hominum
(1791). Sua obras impressas incluem o Aviso aos
Lavradores (1792), Memoria
sobre a barrilha (1792 ?), Anuncio
dos descobrimentos (1795), Memoria
sobre a cultura dos algodoeiros (1797), Dissertação
sobre as plantas que dão linhos (1809), Discurso
sobre a instituição de jardins (1809) e A
almécega e a carnauba (1809) (Manuel
Arruda da Câmara – Obras Reunidas).
No que concerne aos estudantes brasileiros que
estudaram medicina na Universidade de Coimbra temos a publicação já citada, que
Rodolpho Augusto de Amorim Garcia fez nos Anais da Biblioteca Nacional do Rio
de Janeiro (v. LXII, 1942). Restrinjo-me aqui apenas ao período compreendido
entre 1772 e 1808 em que é possível reunir 48 brasileiros que lá se formaram. A
fim de não sobrecarregar esta atenta e distinta audiência com a declinação de
tantos nomes, menciono somente os médicos mais antigos lá formados naquele recorte
cronológico em cada um dos atuais Estados do País: Joaquim José Alves (Mariana
– MG)[1772], Francisco de Mello Vasconcellos e Lima (Bahia) [1772], Estacio
Gularte Pereira (Rio de Janeiro) [1773], João Francisco de Sousa (Pernambuco)
[1777], José Bento Monteiro da Franca (Paraíba) [1787], Matheus Valente do
Couto (Pará) [1795], Lourenço Belfort (Maranhão) [1795] e João Nepomuceno da
Silva Paulista (São Paulo) [1795] (Estudantes Brasileiros
na Universidade de Coimbra – 1772-1872).
Meus senhores, até agora tenho usado em demasia o tempo que
me foi concedido portanto encerro estas palavras através das quais, quase que a
toque de caixa, pude apenas respingar algumas gotas de História da Medicina
Brasileira nos primeiros séculos. Tanto quanto possível, bem ou mal,
procurei contemplar o território do antigo Estado do Brasil e do antigo Estado
do Maranhão, bem como do Brasil holandês, sem sequer esquecer minha pequenina
Paraíba que hoje se faz grande mercê do brilho dos ilustres membros deste XV CONCLAVE
DA FBAM – 2014.
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