Wednesday, August 11, 2010

ONDE A TERRA PENETRA NOS CÉUS [3/5]



[Clique nas fotos para ampliá-las]


Recente viagem feita ao “Teto do Mundo” por uma de minhas amigas indianas relembra o itinerário pioneiro seguido em 1624 por um missionário lusitano


Evandro da Nóbrega

ESCRITOR, JORNALISTA, EDITOR

[http://druzz.blogspot.com]

[druzz@reitoria.ufpb.br]

Fotos pela Dra. Arundhati Dighe Chafekar e pelo Dr. Chirag Chafekar, diretamente de Mumbai, Maharashtra, Índia


Esta é a terceira página, de uma série de cinco, sobre a recente visita de minha amiga indiana Aru ao “Teto do Mundo”, nos Himalaias. O melhor tempo para visitar toda essa belíssima (embora frígida) área é entre junho e setembro, quando o clima (tempo e temperatura) torna-se razoavelmente suportável. Na maior parte do percurso, Aru e seu marido Chirag enfrentaram entre 5 e 10 graus, tanto acima quanto abaixo de zero — embora as noites fossem ainda mais terrivelmente friorentas.

Nesse percurso, não era infrequente que nossos viajantes tivessem que recorrer a restaurantes do caminho, em busca de boas porções de comidas superenergéticas — como vimos no caso da pakoda. Na estrada, sem ainda haverem chegado ao “Teto do Mundo”, em Leh, e ainda no Estado de Jammu e Caxemira, os visitantes passaram por Sonamarg (ou Sonmarg = “Pradaria Dourada”). Situada 87 km a Nordeste de Srinagar, no vale do rio Sindh, o maior curso d’água na rica Caxemira, é cidade também muito procurada por turistas, entre outras coisas por se achar a 3 mil metros acima do nível do mar.

Aí, perto de impressionantes cordilheiras e sob belíssimo céu azul-esverdeado, Aru encontrou espetaculares desfiladeiros, barrancas e gargantas, boqueirões e cinturões de serranias, extensos prados de grama e flores, encostas de serras eivadas de casario ou de aldeias inteiras, meandros de rios com abundância de trutas e de enormes carpas conhecidas (em nepalês, hindi, urdu, pandjabe e caxemiro) como sahar, mahseer, mahaser, mahasher, mahasaula, maha-salka e ma­ha-asya [= “grande boca”] — todos esses termos indicando o belo exemplar de peixe tido como o “salmão indiano” ou “truta das neves”. Batizado a partir dos étimos mahi (= “peixe”, no indo-persa anterior ao sânscrito + sher (= “tigre”, em persa antigo), esses enormes peixes são vistos nadando contra a corrente ou até “subindo” por cachoeiras no Himalaia... Fazem as delícias dos pescadores: a apreciada carne de um só espécime fornece alimentação por vários dias...

Jummu & Caxemira, o rico, vasto e histórico Estado mais setentrional da Índia, situa-se quase inteiramente nas elevações himalaicas. Limita-se com os Estados-irmãos de Himachal Praseh e Pundjabe (ao Sul); com a China (Norte e Leste); e com territórios paquistaneses a Oeste e Noroeste. O Vale da Caxemira, o “Paraíso na Terra”, tem belas paisagens montanhosas. Ladakh, o “Pequeno Tibete”, com suas espetaculares montanhas e cultura predominantemente budista, é uma das três regiões principais do Estado de Jammu e Caxemira, em que a cidade de Srinagar funciona como a “capital de verão”, ao passo que Jummu, com seus numerosos santuários budistas e muçulmanos, é a “capital de inverno”.

Entre a cordilheira de Kunlun ao Norte e os Grandes Himalaias ao Sul, Aru e acompanhantes viram-se na cidade de Ladakh (transliteração persa) ou La-Dwags (transliterando-se diretamente do alfabeto tibetano e com o significado de “terra das altas passagens”). Puderam constatar ao vivo que uma das línguas ali faladas é justamente o ladaque.


Onde o zero grau já é considerado temperatura “quente”...


O ladaque (ladakhi) ou tibetano ocidental arcaico, com seus dialetos burigue (purig, purki) e balte (balti) — é usado também no Baltistão, área paquistanesa. Trata-se de idioma bem aparentado com o tibetano propriamente dito. Mas, apesar de a língua tibetana ser "irmã" do ladaque, utilizando o mesmo alfabeto, um falante da região central do Tibete não compreende o que diz um utente do ladakhi, que tem muitos dialetos: a) ladakhi principal (ou lehskat, porque falado na capital do Ladakhi, Leh); b) shamskat, falado no Noroeste de Leh; c) stotskat, usado no Sudeste do vale do rio Indo; d) nubra, dialeto falado ao Norte etc.

Historicamente, o antigo reino de Ladakh constituiu-se em importante encruzilhada das rotas de comércio do Oriente, especialmente entre os os vales do Baltistão, do rio Indo e de Nubra, além das regiões de Zangskar, Lahaul, Spiti, Aksai Chin, Nagari, Rudok e Gu-ge, para não falar das áreas chinesas. Leh é a maior cidade do antigo reino de Ladakh e um dos poucos locais que ainda abrigam o budismo no Sul da Ásia. Habitam-na, entre outros, budistas tibetanos e muçulmanos de orientação xiíta.

O clima é, portanto, frio e árido, com invernos realmente rigorosos de outubro a março. Chove bastante e até cai neve, no inverno — mas, nas demais estações, o clima é considerado ótimo: “quente” o bastante para que todos aproveitem as delícias de uma Natureza temperadamente ensolarada. Por causa do inverno, faz-se apenas uma colheita agrícola por ano, em Leh, apesar de outras áreas próximas permitirem duas colheitas anuais.

Foi a 2 de julho que Aru visitou Khardung [= “o Passo de Khardung”], aquele que, como vimos, eleva-se a quase 5,4 mil metros de altura e é servido pela mais alta rodovia mototransitável do Planeta. A vista que se tem dali é de tirar o fôlego até de jogadores de futebol que tenham, ehr, “dois pulmões”... Depois de uma noite de descanso, todos foram para o mercado local, a fim de se fartarem com castanhas & damascos frescos, cultivados ali mesmo —e adquirirem algumas jóias típicas da região, montadas com pedras semipreciosas cobertas de prata. No dia 4 de julho, novamente em Leh, pegaram o voo final, às 9 h da manhã, de regresso a Mumbai, com escala em Délhi. Fim da viagem.

O jesuíta luso Andrade esteve no Passo de Ma-na; a Dra. Aru, bem perto dali: no Passo de Khardung

O passo de montanha em que Aru esteve, nos Himalaias, chama-se Khardung; o passo de montanha cruzado pelo jesuíta António de Andrade entre a Índia e o Tibete chama-se (ainda hoje) Ma-na. É muito pequena a distância entre os dois pontos. E essa pequena diferença na localização geográfica das duas importantes passagens de montanha entre a Índia e o Tibete/China é que o passo de Ma-na, com mais de 5,6 mil m de altitude, fica nas coordenadas de 31 graus, 4 minutos e 5 segundos de latitude Norte e de 79 graus, 24 minutos e 59 segundos de longitude Leste, enquanto o passo de Khardung-La, com mais de 5,3 mil m de altura, tem por coordenadas 34°16’44’’ (Norte) e 77°36’17’’ (Leste). Diz-se “Khardung-La” e “Mana-La” porque “la”, nos dialetos locais, significa exatamente “passo”, “passagem”.

O pico junto ao passo de Khardung tem quase 5,4 mil metros de altura. Para imaginar o que experimentaram as mentes de Aru, agora, e do padre Andrade, no século XVII, pense em Você andando por um local em que a paisagem é dominada por montanhas com mais de 3,5 mil metros de altura (mais de três quilômetros e meio acima do nível do mar!). É assim a região em que fica Leh — do antigo tibetano sLes [= “acampamento de nômades”].

A parte de Leh conhecida como "cidade velha" encontra-se no rol dos 100 monumentos mais ameaçados de desaparecimento, no Mundo. Isto por causa de vários fatores: chuvas, mudanças repentinas de temperatura e clima, modificações abruptas nos padrões de ocupação do solo, insuficiência de cuidados por parte das autoridades governamentais etc. É preciso reconhecer, porém, que essas autoridades têm procurado preservar, a todo custo, e até onde podem, esse tesouro histórico-artístico da Humanidade. É necessário que os agentes do Governo monitorem continuamente o uso das grandes vias de acesso a Leh e locais próximos, vez que elas, nos meses de inverno, acham-se bloqueadas por gelo e neve. Mas há também as pequenas estradas e caminhos, que, de normal, permanecem abertas o tempo todo, em virtude de ser relativamente pequena a precipitação de chuvas e nevascas no Vale do rio Indo. Nessa região, planta-se uma variedade especial de cevada, que o povo utiliza para a produção de tsampa, apreciado alimento energético, apropriado para áreas frias.

Por si só já exigiria uma página inteira a mera descrição das grutas sagradas de Amarnath, um dos mais célebres santuários do hinduísmo, a quase 3,9 mil metros de altitude e com 5 mil anos de existência e dedicação ao deus Xiva (Shiva), além de sua transcendental importância para a mitologia hindu.

_________________________


No comments: