Wednesday, August 11, 2010

ONDE A TERRA PENETRA NOS CÉUS [4/5]

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Recente viagem feita ao “Teto do Mundo” por uma de minhas amigas indianas relembra o itinerário pioneiro seguido em 1624 por um missionário lusitano

Evandro da Nóbrega

ESCRITOR, JORNALISTA, EDITOR

[http://druzz.blogspot.com]

[druzz@reitoria.ufpb.br]

Fotos pela Dra. Arundhati Dighe Chafekar e pelo Dr. Chirag Chafekar, diretamente de Mumbai, Maharashtra, Índia


Nas partes anteriores, descrevemos a visita ao “Teto do Mundo” recentemente feita por uma de nossas amigas indianas, a Dra. Arundhati Dighe Chafekar. Vamos nos concentrar, agora, num jesuíta lusitano, o missionário e desbravador que, no século XVII, em condições bem mais severas, fez o mesmo trajeto.

Era ele António de Andrade (1580-1634) — assim mesmo, com acento agudo, por se tratar de português de Portugal. Andrade, com seu companheiro de jornada, o padre Manuel Marques, também luso, foi o primeiro europeu a colocar os pés no Tibete, depois de cruzar as cordilheiras do Himalaia, pela passagem chamada Mana (Ma-na La = “passo de Ma-na”, em tibetano; em chinês é em chinês, Ma-na Shankou). E essa passagem se deu num local não muito distante do Khardung La, o “passo de Khardung” recém-visitado pela Dra. Arundhati.

Claro que esta viagem de Aru, agora, ao Himalaia, não se fez sem certas dificuldades e riscos. É, porém, na atualidade, roteiro percorrido anualmente por milhares de turistas dispostos a enfrentarem muitos graus abaixo de zero — de qualquer modo providos de veículos motorizados, água, eletricidade, restaurantes, abrigos, hotéis e outras facilidades.

Imagine pois o leitor o que não ocorria, no século XVII, quando um jesuíta luso como Andrade, querendo chegar ao Tibete/China, a partir da Índia, teve que enfrentar o mau tempo, nevascas, glaciares, montanhas de gelo eterno, um frio enregelante e tudo o mais, em seu afã de cristianizar inter partibus infidelibus. O pobre Andrade deixou dito, em seus escritos, que, a certa altura, não podia mais prosseguir, visto estarem em petição de miséria suas botas.

Ele nascera em Oleiros, Portugal, num tempo em que religiosos europeus procuravam a todo custo levar o Cristianismo aos mares da China, do Japão — enfim, à Ásia e regiões próximas. Aos 16 anos, Andrade já era aluno dos jesuítas e, de 1600 a 1624, chefiou a missão jesuítica às Índias Orientais. Na Índia, o domínio luso — que governava outras partes do Oriente, como Málaca — tinha por capital Goa, mas se fazia presente em muitas noutras cidades indianas, a exemplo de Agra.

Andrade fora para a Índia com outros 18 jesuítas. Naquele mesmo ano de 1624, deixou Agra em direção a Délhi, para encontrar fabuloso e distante templo (da religião local) de que ouvira falar: Badré. Ele e o compatriota Manuel Marques, mais dois empregados, disfarçaram-se de hindus ou budistas e seguiram um grupo de peregrinos, sendo os primeiros europeus a cruzar o Himalaia e chegar ao Tibete, através da dita passagem de Ma-na. Descobriu o Tibete para o Ocidente da mesma forma que o jesuí­ta português Bento de Goes fora o primeiro europeu a atravessar o Himalaia, da Índia para a China — e como o jesuíta espanhol Pero Páez Jaramillo, falecido em 1662, por vez primeira identificou, no lago Tana, África, em 1618, as nascentes do Nilo Azul — e foi um dos primeiros europeus a andar pela Etiópia.

Na pira, corpo do rajá é cremado com 60 de suas esposas

Em 1631, o padre Andrade enviou à cidade de Leh (onde a Dra. Aru agora esteve) outro jesuíta lusitano, Francisco de Azevedo [1578-1660]. Esse religioso não deve ser confundido com aqueloutro prelado homônimo que, em 1792, assumiria em Portugal a direção do Paroquiado de Viseu. O Francisco de Azevedo a que nos referimos é aquele missionário listado entre os primeiros europeus a chegarem ao reino de Ladakh (onde também agora esteve Aru!), o que ele fez exatamente a 25 de outubro de 1631. Seu grupo partira de Agra em 28 de junho e passara, antes de chegar a Leh, pela cidade de Srinagar — também no roteiro de viagem da Dra. Aru. Em Srinagar, um horrorizado padre Azevedo pôde testemunhar bárbara cerimônia hinduísta da época.

Acabara de falecer o rajá de Garhwal, que foi então cremado, às margens do rio Alaknanda, numa alta pilha de materiais aromáticos (em especial madeira de sândalo e aloés, uma espécie de incenso). Mas não se cremou apenas o corpo do rajá morto: nada menos que 60 de suas esposas pereceram também no macabro ritual. Algumas se atiraram voluntariamente às chamas que devoravam os restos mortais de seu senhor. A maioria dessas infelizes viúvas, porém, teve que ser jogada a muque no fogaréu. Sete dias depois, era coroado o novo rei: um rapazinho de sete anos de idade...

Azevedo nascera em Lisboa e passou quase toda a vida na Índia, visitando reinos como os de Baynara, Ladakh et alia, como seu antecessor nesses locais, o padre António de Andrade, que também fez, na primeira metade do século XVII, viagens bem parecidas, atravessando o Himalaia e deixando importante depoimento, ainda hoje estudado por especialistas.

Em seu relato, o padre Azevedo refere-se, entre muitas outras coisas, aos costumes observados em Leh. Calculou, com incrível precisão, a data de introdução do budismo no reino do Tibete. Referiu-se aos presentes levados pelos jesuístas ao soberano ladakhiano. Contou sobre as enormes maçãs a ele presenteadas pelo rei de Ladakh — maçãs que nada ficavam a dever às lisboetas e cujo exagerado tamanho derivava de serem cultivadas sob o intenso inverno indo-tibetano!.

Em 1631, o padre Azevedo esteve em Leh, capital do antigo reino de Ladakh. Aparentemente, ainda não existia o Palácio Real aí construído pelo rei Seng-ge Nam-gyal (1612-1642) e cujas ruínas foram agora vistas pela Dra. Aru. Era edificação de nove andares, residindo nos aposentos superiores a família real, ao passo que armazéns de víveres e estábulos situavam-se no térreo.

Enquanto outros jesuítas visitavam o Butão e o Nepal, Francisco de Azevedo percorrera, por seis meses, o caminho de Agra a Tsaparang e Leh. Logo depois do insucesso da missão, voltou a Agra.

Bento de Goes, outro jesuíta português, passou-se da Índia à China e acabou com a lenda de Catai

Antes dos feitos do padre Andrade, outro religioso e explorador português, Bento de Góis (1562-1607), que falava diversos idiomas, inclusive turco e persa, alcançou a China, a partir da Índia — e demonstrou que o fabuloso reino de Cataio (Catai, Kitai etc) outra coisa não era senão a própria China.

Assim, ele foi o primeiro europeu a viajar, por via terrestre, entre os territórios indiano e chinês, atravessando montanhas e desertos da Ásia Central (como os montes Pamir e Caracorum, além do deserto de Gobi). Foi viagem sacrificada, de mais de quatro anos e superior a 6 mil km, por paisagens as mais inóspitas. Os jesuítas queriam encontrar o Grã-Cataio ou Cataio porque tinham ouvido dizer que lá existia vasta comunidade cristã isolada, de nestorianos, que cumpria contactar.

Bento foi também quem mapeou a célebre Rota de Seda para a China. Mas sua importância histórica é ainda maior. Agindo num tempo anterior ao das realizações do padre Andrade, Goes igualmente enfrentou viagens cheias de sacrifícios. Andou por Peshawar, Cabul, Yar­kand, Khotan, Turfan e até cidades chinesas, sem no entanto adentrar o Tibete. Mas solucionou o problema: não havia nenhum reino em que florescesse aquela imaginada população cristã...

Pegue o volume 3 do livro Passion and Glory: A Flesh-And-Bloody History of the Society of Jesus, de Ignatius Echániz. Vá ao capítulo 7, intitulado “No Telhado do Mundo: António de Andrade (1580-1634)”. O Autor afirma que, "com sua viagem histórica, Bento de Goes provara que Catai não era senão a China e que o reino cristão que se pensava existir na Ásia Central nada mais era que um sonho. Mas o mito não desapareceu. Como também se procurava uma rota terrestre para a China, diversas expedições foram organizadas para atravessar o maciço asiático em busca de uma rota e da comunidade cristã 'perdida'. Esses esforços — viagens arriscadas através da imponente cadeia de montanhas do Himalaia — levaram ao estabelecimento de uma missão no reino de Gu-ge (Tibete Ocidental)”.

Um século depois de Andrade é que aí se destacariam outros jesuítas estrangeiros, como o germânico Johannes Grüber (1623-1780) e o italiano Ippolito Desideri (1684-1733), estabelecidos em Lhasa, a capital tibetana. Fica claro que, depois da via­gem histórica e importantíssima de Bento de Goes, “em busca da Cristandade perdida”, foi a vez do padre António de Andrade exercer seu papel da mesma forma relevante.

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