Thursday, August 12, 2010

ONDE A TERRA PENETRA NOS CÉUS [5/5 - FINAL]

_________________________





[Clique nas fotos para ampliá-las — e para melhor visualizar as legendas]


Recente viagem feita ao “Teto do Mundo” por uma de minhas amigas indianas relembra o itinerário pioneiro seguido em 1624 por um missionário lusitano


Evandro da Nóbrega

ESCRITOR, JORNALISTA, EDITOR

[http://druzz.blogspot.com]

[druzz@reitoria.ufpb.br]


Fotos pela Dra. Arundhati Dighe Chafekar e pelo Dr. Chirag Chafekar, diretamente de Mumbai, Maharashtra, Índia


+ + +

Este artigo — publicado originalmente no jornal A União, de João Pessoa (PB) — é também reproduzido pelos seguintes URLs:


- Blog Cultural EL THEATRO, de Elpídio Navarro: www.eltheatro.com


- Portal PS OnLine, de Paulo Santos: www.psonlinebr.com


- Portal Literário RECANTO DAS LETRAS:

http://recantodasletras.uol.com.br/autores/druzz


- Portal do Jornal A UNIÃO ON LINE:

www.auniao.pb.gov.br


- Blog DRUZZ ON LINE, de Evandro da Nóbrega:

http://druzz.blogspot.com

+ + +


Para mim, que sou metido a estudioso ou curioso dessas pioneiras viagens de missionários jesuítas pelo Subcontinente Indiano (e por outras lonjuras asiáticas), é coincidência das Arábias que venha agora uma amiga minha, lá da Índia, e me diga estar fazendo esses mesmos caminhos que, sem que ela saiba em detalhes, foram trilhados há cerca de quatro séculos por denodados exploradores e desbravadores — embora eu nada veja de sobrenaural em coincidências que tais.

Recapitulemos o que ocorria em inícios do século XVII na região de Leh, agora visitada pela Dra. Arundhati. De início, os padres António de Andrade e Manuel Marques foram recebidos com desconfiança pelo rei de Gu-ge, cuja capital era Tsaramang. Não traziam mercadorias valiosas para trocar? Ora essa! O soberano não acreditava que a dupla ali estivesse só para “salvar almas”. Mas, com o passar dos dias, sendo os dois homens cultos e viajados, com uma argumentação cerrada em defesa do que era para a corte real uma novidade, a religião cristã, ganharam a confiança do rei e da rainha, tendo-lhes sido permitido ensinar o catecismo.

O rei até lhe prometeu um terreno para que construíssem uma igreja perto da Casa Real. Quando o padre Andrade lhe disse, dias depois, que ia retornar a Agra, o rei não gostou e somente autorizou a ida com a promessa solene de que voltaria. Ora, Andrade queria ir a Agra justamente para arregimentar outros missionários, de modo a criar uma missão jesuítica em Tsaparang. Satisfeito, foi a Agra e mais uma vez atingiu o reino de Gu-ge, no então Pequeno Tibete, onde de fato criou um centro cristão. com apoio real.

O jovem religioso Andrade saíra de Portugal a 22 de abril de 1600, com cerca de duas dezenas de padres jesuítas. Em 22 de outubro do mesmo ano, chegara à cidade de Cochim (corruptela portuguesa de seu nome, Kotchi, em língua malaiala, pronunciando-se kótxi, com as duas vogais bem breves). Cochim era um dos pontos mais fortes da dominação portuguesa na costa ocidental da Índia, desde 1503, e integra hoje no Estado de Kerala. Indo para Goa, a capital indiana do vasto Império português, Andrade concluiu seus estudos no colégio jesuíta aí localizado. Teria igualmente aprendido o persa, com islamitas da Caxemira, vez que este idioma era bastante usado nas cortes. Então foi enviado para fazer parte da missão cristã em Agra. Essa cidade indiana [do sânscrito agrevana = “orla da floresta”] foi, de 1526 a 1658, capital dos imperadores mogóis (que não devem ser confundidos com os mongóis). Em 1624, Andrade já era o superior da missão cristã no reino mogol e acompanhou o potentado de então, o célebre Djahaanguiyr (ou Jahangir, 1605–1627), numa viagem a Lahore [pronuncia-se larrór], na região do Pandjabe (Punjab), hoje no Paquistão e cidade considerada o “Jardim dos Mogóis” por causa de sua tradição muçulmana em meio a uma Natureza exuberante.

Nessa viagem, a comitiva passou por Delhi, que, em 1638, se tornaria a nova capital do império mogol/mogul. Nesta cidade, o jesuíta viu que imenso grupo de budistas ia fazer longa viagem, de cerca de um mês e meio, a fim de visitar um quase mítico templo, Badré [provavelmente Badrinath], localizado num deserto entre a Índia e o Tibete. Andrade pensou com os botões da batina que, finalmente, poderia chegar ao território tibetano, quem sabe ao reino do Grão-Cataio! E, com o padre Manuel Marques, além de dois criados, decidiu se incorporar ao cortejo, disfarçando-se de monge budista, mas tendo o cuidado de levar, entre muitas outras coisas, seu compasso de Sol e o astrolábio, para melhor orientação e cálculos com vistas a suas anotações (jesuítas sempre foram versados nas mais diversas ciências & disciplinas).

Descobriram o disfarce do padre Andrade logo no início da jornada e ele ficou sendo visto pelos demais viajantes como tipo estranho, uma espécie de “lama estrangeiro”. Depois de passar por Srinagar, Badrinath e Mana é que Andrade chegou a nosso já conhecido Passo de Mana [Ma-na La], por onde atingiu finalmente um dos vários reinos do Tibete, Gu-ge, visitando seu rei, em Tsaparang. Estava no que se convencionou chamar Pequeno Tibete, havendo ainda o Tibete Central.

Em português, Tsaparang virou Chaparangue; e Gu-ge ficou como Coqué, por causa da confusão fonética entre consoantes sonoras e surdas de uma língua para outra (no caso o G e o K). Tsaparang, capital do reino de Gu-ge, tinha por rei, a esse tempo, Gyalpo (que, em tibetano, quer dizer simplesmente “rei” ou “rajá”). Foi com ele que Andrade tratou logo de conversar. O difícil trajeto tomara-lhe não um mês e meio, mas três. Passou algumas semanas em Tsaparang, para onde empreenderia nova viagem, mais uma vez a partir de Agra. Suas aventuras não haviam terminado...

Grande Lama destrona irmão rei: nem mel, nem cabaça

Além de todas as intempéries e outras durezas que lhe eram impostas pelas más condições do percurso, o jesuíta Andrade ainda teve que enfrentar a má-vontade de outro rajá, o de Srinagar. E, indo ao Tibete pela terceira vez, em 1627, viu, com desgosto, que toda a família real fora atacada e eliminada em meio a uma revolta — promovida desgraçada e justamente pelo irmão do rei, que era também o Grande Lama, o chefe da religião lamaísta, modalidade tibetana de budismo.

O Grande Lama ficara enciumado com o apoio dado aos cristãos pelo soberano de Gu-ge. E, para depor o mano, apelou para a ajuda do rei de Ladakh. Este foi dar uma mãozinha, sim, levando seu exército. Mas, ladinamente, se apossou do trono e mandou eliminar possíveis pretendentes à coroa — inclusive o antigo rei e família. Esse novo manda-chuva também não aprovava a liberdade religiosa que seu antecessor concedia aos jesuítas.

Todo o trabalho do padre Andrade fora por água abaixo. Mas, jesuíta “por derradeiro”, o religioso não desistiu. Retornou a Goa, para atuar como superior da Ordem, morrendo envenenado logo depois.

Mas, antes de falecer, Andrade fez o que devia: deixou tudo por escrito e organizou nova expedição ao Pequeno Tibete. Tendo aprendido o tibetano e estudado bem o budismo (para bem refutá-lo com argumentos cristãos), deixou imortal legado em termos de informações sobre essa parte do Mundo: as cartas, mapas e outros dados enviados a seus chefes religiosos na Índia e na Europa.

Antes de ser envenenado (provavelmente a mando de chefes islamitas também enciumados com a presença dos cristãos), Andrade enviou a Tsaparang outro jesuíta (Francisco de Azevedo), para que supervisionasse essa missão e mais outro centro cristão criado nas cercanias.

Vê-se, desde o início, que o padre Andrade era muito capaz e denodado: foi provincial da Ordem Jesuíta em Goa, deputado da Inquisição na Índia e reitor do Colégio de São Paulo (jesuíta), na capital indiana do Império Português, que mantinha um vice-rei em plagas índicas.

É impossível dizer quantos livros, nos mais diversos países e nas mais diversas línguas, se referem aos feitos dos jesuítas Goes, Andrade, Azevedo e outros intimoratos portugueses (e de outras nacionalidades) que deram a vida enfrentando tão inóspitos locais.

Que já não são assim inóspitos, prova-o a recente viagem (entre fins de junho e inícios de julho próximos passados) empreendida por minha amiga, a Dra. Arundhati Dighe Chafekar, às fímbrias do atual Tibete (que não se confunde com os antigos Pequeno Tibete e Tibete Central), passando por Leh, capital do antigo reino de Ladakh; por terras antes pertencentes a Tsaparang e ao velho reino de Gu-ge; pela multi-histórica cidade de Srinagar; pela Délhi que depois evolveria para Níi Dillíi (Nova Délhi); pelo belíssimo vale da Caxemira; pelas regiões dominadas por Kargil, Drass, Waka, Sonmarg — e pela sagrada caverna de Amarnath; por muitos belos lagos formados pelo rio Indo (Sindh), em especial o Dal e o Pangong; pelos ricos vales de Nubra, Shyok e do próprio rio Indo; pela cordilheira de Kunlun; e exatamente pelo local em que se situa o Passo de Khardung, passagem internacional no Telhado do Mundo...

Como poderia eu deixar de escrever sobre tantas coincidências numa só?!


Se Você olhar e disser “Santa Mãe!”, estará corretíssimo


Bem perto dos locais em que estiveram a Dra. Aru (agora) e o padre Andrade (no século XVII), ergue-se o imponente Everest, mais alta montanha da Terra, com uns 8 mil 850 m de altura.

É nome oficial, em honra (contra sua vontade) ao geó­grafo anglo-galês, Sir George Everest, responsável pelo levantamento topográfico da Índia.

Localmente, dependendo do país (porque os Himalaias não respeitam fronteiras), o Everest é conhecido por outras designações, que não devem surpreender a Dra. Aru, fluente em inglês, márata, hindi e gujarate:

  • antigo nome geocientífico: Pico XV;
  • atual nome geocientífico: Monte Everest;
  • em tibetano e sherpa: Qomolangma ("Santa Mãe") [Chomolangma é outra forma de grafar a mesma coisa];
  • em sânscrito e nepalês: Sagar­matha [“Mãe do Oceano”];
  • em limbu ou yakthung pan, língua tibeto-birmanesa do Nepal, Caxemira, Siquim, Dardjílin e Bengala Ocidental, na Índia: Chajamlan­gma;
  • noutros dialetos: Kangchen­junga, em verdade, uma confusão antiga, já desfeita, porque Kangtchendjun­ga, do nepalês Kantchandjann­ghaa ["Os Cinco Tesouros das Neves", com cinco picos, representando ouro, prata, pedras preciosas, grãos e livros sagrados] é o nome da terceira mais alta montanha do Mundo e não, propriamente, do Everest.

Em chinês, há duas formas de dizer "Monte Everest":

1) Zhumùlaangmaa Feng (adaptação fonética do nome original tibetano, mas que, ao pé da letra, poderia ser algo como "Pico da Sagrada Mãe das Longas Contas" ou "Pico da Santa Mãe de Longas Gotas de Lágrimas"); e

2) Shèngmuu Feng ("Pico da Sagrada Mãe").

_________________________

No comments: