Thursday, December 16, 2010

BEM "DE DENTRO" DA ORQUESTRA...


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CANHÕES VERSUS BUMBOS
Tchaikovsky previu 16 tiros de canhão na partitura original. Mas nem sempre se usam canhões reais...  



Bem “de dentro” da Orquestra...

Vendo-se, de repente (e sem querer), no meio dos músicos da orquestra, o autor tenta inventar algo suficientemente mentiroso que explique sua presença bem ao lado do mavioso naipe de trompas

Evandro da Nóbrega,
escritor, jornalista, editor.
Universidade Federal da Paraíba
Instituto Histórico e Geográfico Paraibano
Conselho Estadual de Cultura
http://druzz.blogspot.com
druzz@reitoria.ufpb.br
druzz.tjpb@gmail.com

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Este artigo — publicado originalmente no jornal A União, de João Pessoa (PB) — é também reproduzido pelos seguintes URLs:

- Blog Cultural EL THEATRO, de Elpídio Navarro:
www.eltheatro.com

- Portal PS OnLine, de Paulo Santos:
www.psonlinebr.com

- Portal Literário Recanto das Letras:
recantodasletras.uol.com.br/autores/druzz

- Portal do Jornal A União On Line:
www.auniao.pb.gov.br

- Blog DRUZZ ON LINE, de Evandro da Nóbrega:
http://druzz.blogspot.com

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Situe-se: auditório & palco do Cine Banguê do Espaço Cultural “José Lins do Rego”, em João Pessoa (PB). Data: 9 de dezembro de 2010. Evento: Noite da Cultura. Atrações principais, entr’outras: apresentação da Orquestra Sinfônica da Paraíba (uma das três melhores do Brasil), sob a regência do maestro-titular Marcos Arakaki; da Orquestra Sinfônica Jovem da Paraíba (regente: maestro Luiz Carlos Durier); do Coral Sinfônico da Paraíba; e do Coral do UNIPÊ (Centro Universitário de João Pessoa) e convidados.

Ia-me dirigindo à entrada principal do Cine Banguê, quando uma mocinha, minha conhecida, alertou:
— Dr. Druzz! Não vá por aí! O auditório está totalmente lotaaaaado! Melhor ir por aqui: a entrada dos músicos, isto é, por onde entra a orquestra!...
Só há um inconveniente, se isto me importava, complementou a garota: “O Sr. vai ficar quase no meio da orquestra. Quer dizer, terá que se acomodar junto a uma seção lateral, a das trompas. Algum problema?”
Para mim, nenhum problema. Era até uma oportunidade de ver o funcionamento duma orquestra “por dentro”...
De modo que, com pouco mais, já ao lado de duas moças trompistas e um rapaz idem, vi-me olhando diretamente para o maestro, que se aprestava para reger um de meus espetáculos favoritos desde a infância: a célebre Abertura 1812, de Tchaikóvsky!
Puxa, com que então iria eu assistir, ver, sentir a Abertura famosa do velho Pyotr Ilytch de guerra numa posição realmente privilegiada: quase bem no meio da orquestra, se falarmos com certo exagero. Parafraseando Sérgio Porto, disse de mim para mim: “É minha ensancha oportunosa!”...

Mas isto não se daria sem algum, como direi, contratempo. Minha presença, ali, junto ao naipe das trompas, não deixaria de chamar a atenção de alguém na plateia — já que todos os olhares, evidentemente, se voltavam para as costas do maestro e para a frente da orquestra...

Logo o Dr. Demian, uma das autoridades aboletadas na primeira fila das poltronas do auditório, me acenou e sorriu. Rindo ainda mais, e me apontando discretamente, chamou a atenção, em cochichos ao pé do ouvido, de um dos vizinhos de cadeira, o Dr. Gaudy — e logo uma pá de gente (os Drs. Gaudy, Demian, Perreyre, Leytón, Maurice, Dovid e muitas outras personalidades, homens e mulheres) começou também a sussurrar e a me apontar, entre surpresos & divertidos, justamente por me verem na parte do palco (ou quase-palco) exclusiva dos músicos!...

Com a cara mexendo, fiquei também a olhar para todos eles e elas. Mas logo minha atenção voltou-se para uma senhora elegante bem à minha frente, que comentava algo totalmente fora de propósito:

— Vê aquele músico ali, que, só de quando em vez, bate no grande bombo branco, para imitar os canhões inicialmente previstos por Tchaikóvsky? É incrível, mas ele ganha o mesmo salário que ganha um spalla, o qual passa o tempo todo mexendo o arco nas cordas de seu violino?! Como é que pode?!

Não sabia eu (soube depois), mas o Dr. Demian, lá na primeira fila das cadeiras e apontando para mim, estava dizendo ao Dr. Gaudy mais ou menos o seguinte:

— Só mesmo o filósofo Druzz faria isto! Ao invés de estar aqui, conosco, de frente para a orquestra, ele inventa de ir lá para o meio dos músicos! Deve estar pensando em escrever um artigo no gênero “Ouvindo a Música erudita (ou, no caso, clássica ligeira) de dentro da orquestra”...

Em pompa e circunstância, dezesseis tiros dos canhões do czar

Interpretei tais sorrisos como de mofa — e, em segundos, enquanto a música não começava, minha febricitante mente esboçou uma “explicação-vingança”. Iria depois dar a eles minha versão da coisa. Versão totalmente inventada, claro.

Aproveitando o infeliz comentário da elegante senhora, dir-lhes-ia:

— Ah, Vocês estão por fora! Não sabe o homem do imenso bombo branco? Aquele que bate nele para imitar as salvas de canhão da partitura original? Pois bem, o maestro desconfia que o rapaz não esteja batendo o número exato de pancadas necessárias para substituir o fogo das baterias militares. O regente, então, sabendo que sou apreciador de Tchaikóvsky e que aprendi a ler música sozim, resolveu me atribuir tarefa bastante útil, embora capciosa: observar bem se o homem do bumbo estava cumprindo direito seu dever de castigar o couro dos drums nos momentos certos! Até me deu cópia da parte da percussão, só para eu me concentrar nessa partitura (não mais que cinco páginas) e, ao mesmo tempo, observar o comportamento do músico responsável pelos bombos. Só por isto é que eu, incognitamente, adentrara o espaço das trompas: para de lá melhor investigar, sem ser pressentido, o comportamento do homem do big tan-tan!

Tudo mentira minha, óbvio! Maestros não são capazes de tais atitudes!

De outro lado, há duas formas de performance da Abertura 1812:

a) em ambientes abertos, quando se pode (ou não) utilizar canhões verdadeiros, com balas de festim ou não, numa representação da artilharia dos czáricos exércitos; e

b) em ambientes fechados, caso em que dificilmente se utilizam canhões de vera — especialmente depois daquele célebre concerto em que um engano do operador, trocando as balas de festim por balas de verdade, arrasou grande parte do teatro...

Na tchaikovskiana Abertura, as trompas são mais usadas lá para o final do espetáculo — é, sim, um espetáculo! É quando já se torna irreversível a vitória dos exércitos da Santa Mãe Rússia sobre o invasor napoleônico.

Então, por enquanto, continuei a imaginar besteiras, já que não precisava me preocupar com o estridor das trompas... Não propriamente um stridor, esse “som estrondoso, áspero, incomodativo”, esse estrépito, estrondo ou zumbido cheio, penetrante... A trompa, afinal, produz um dos mais belos sons de toda a orquestra! Ah, as trompas nos “concertos de caça”, em que elas imitam à perfeição as buzinas em forma de chifre — aquelas que os caçadores sopra(va)m nas caçadas a cavalo e que devem fazer a delícia dos galgos corredores. E aquelas duas ali eram sem dúvida trompas cromáticas, de sonoridade suave, porque dotadas de pistões.

De outra parte, não podia eu ficar olhando para os tubos metálicos das trompas, arrumados como intestinos caprichosamente enrolados em si mesmos, nem para seus bocais largos ou sua saída cônica. Minha obrigação era atentar para isto: se o homem do bumbo dava suas batidas nos momentos certos.

De um modo ou outro, não poderia haver nome mais apropriado, a aplicar a esse instrumento, senão trompa mesmo, que chega a ser onomatopaico — desde aquelas primordiais trompas cônicas, ditas “lisas”, sem orifícios e cuja afinação depende exclusivamente de seu tamanho ou extensão, até as trompas de harmonia, cujo som se altera graças a tubos suplementares.

As três ou quatro trompas em fá não são os únicos instrumentos que dão beleza à Abertura 1812. Tchaikóvsky usou tudo a que tinha direito: flautas e piccoli, oboés e corne inglês, clarinetes em si bemol, fagotes & contrafagotes, trompetes em mi bemol, cornetins em si bemol, trombones e tubas, violinos e violas, violoncelos e contrabaixos — e, óbvio, os tímpanos e a percussão, motivo pelo qual, já nem precisa dizer, estava eu ali amofumbado entre os músicos, com uma cópia da partitura na mão: a parte dos tímbales em sol, si e mi sustenido, sinos grandes e sinos pequenos — e, naturalmente, os tambores pelo vulgo ditos bombos, bumbos ou gongos deitados.

Tchaikóvsky previra também uma banda militar completa, como integrante da orquestra maior — banda mavórtica que só toca no final, mas também com seus cornetins em si bemol, trompas em fá, trombones e, ai!, seus tambores & tímbales, tímpanos & tamborins, para não falar dos pratos, esses instrumentos de percussão, compostos por discos metálicos, que podem deixar momentaneamente surdo quem passar nas imediações, quando do choque entre o prato da direita e o da esquerda... ;-)))

La Marseillaise não era então o hino francês — mas, em nome da Arte, quem se importa com isto?

O músico responsável por aqueles imensos tambores superiormente retumbantes segue à risca o que vê escrito em sua parte, id est, a partitura. Da mesma forma que os demais músicos, tem que acompanhar a execução da peça musical desde o início, até o fim, para somente dar tal ou qual pancada quando necessária (e usar a mão livre para abafar efeitos). Não pode ficar batendo aqui e ali, aleatória e adoidadamente, como se agitasse pandeiros.

Há orquestras que substituem a banda de metais por um órgão. Outras, ao invés dos sinos de carrilhão, usam os chamados sinos tubulares; e ainda outras existem que, ao invés dos canhões (ou dos bumbos), empregam canhoneios reais gravados. Não é o caso, aqui — e a orquestra já iniciava os primeiros acordes da inesquecível Abertura em mi bemol maior que a gente, ainda criança, aprendia de cor, da primeira à última nota, de tanto ouvi-la na antiga coleção de música clássica ligeira de Seleções do Reader’s Digest.

Se muito não laboro em erro, seguem-se o largo, depois o poco più mosso, ainda depois o poco stringendo, o andante e, por fim, o allegro giusto/allegro vivace... Tudo para celebrar em 1882, os 70 anos do êxito, em 1812, no campo de Borodino (onde morreram mais de 100 mil pessoas), das forças do czar defendendo Moscou contra as tropas napoleônicas.

Transportamo-nos, pela bela música, para o gélido campo de batalha, com La Marseillaise opondo-se aos hinos Deus salve o seu povo e Deus salve o czar...

E, aqui, há um anacronismo a que Tchaikóvsky fez vista grossa, na intenção de dar maior expressividade à encomendada música algo incidental, mas genial: quando Napoleão invadiu a Rússia, o hino nacional francês já não era mais La Marseillaise (ele a vetara em 1805!), embora voltasse a sê-lo tempos depois, em 1879.

Por causa disto, não, que, à época da luta em Borodino, a Rússia também não tinha um hino que pudesse chamar de seu... Deus salve o czar viria depois...

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